O sociólogo Demétrio Magnoli, um quadro político do conservadorismo, dedicou sua coluna mais recente, na Folha, a um curioso objetivo: apresentar o retorno do Talibã ao poder, no Afeganistão, como momento de identidade e felicidade partilhado por supostos extremos, à direita e à esquerda.
Para provar sua tese, elencou trechos das mais diversas autorias, devidamente retirados de contexto e remontados como evidências de aparência irrefutável, no estilo que fez famosa a agônica República de Curitiba, perita em torturar os fatos até fazer o porco confessar que é cachorro.
Na diatribe que me diz respeito, repetiu um texto publicado em redes sociais: “Toda derrota do imperialismo estadunidense é bem-vinda, pois o enfraquece em termos mundiais. Mesmo quando os vitoriosos são uma fração reacionária como os talibãs”. Não é de boa-fé extrair, desse breve e claro comentário, qualquer conclusão de simpatia ou paixão pela organização fundamentalista islâmica.
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Para Altman, não pode ser levada a sério uma análise que desconsidere o imperialismo como o vetor tóxico das relações internacionais
Com um currículo nutrido de graduações e livros publicados, seria desrespeitoso imaginar que o colunista desconheça a história recente. Resta-nos pensar que prefira virar as costas para a realidade, por notável fidelidade ideológica. Aponta o dedo para a “tirania fundamentalista” e denuncia “mulheres convertidas em utensílios domésticos”, mas omite que a Casa Branca foi a parteira dessas correntes retrógradas, mobilizadas contra a União Soviética durante a Guerra Fria.
Entre os anos 1950 e 1980, quando o pan-arabismo e o nacionalismo centro-asiático eram aliados do campo socialista, o fundamentalismo islâmico exibia influência marginal. A descolonização na África e na Ásia, alavancada pelo triunfo do Exército Vermelho sobre o nazismo e a ascensão dos movimentos de libertação nacional, impulsionara grupos laicos e progressistas que foram implacavelmente combatidos por Washington.
Os Estados Unidos armaram e financiaram o fundamentalismo islâmico no Afeganistão, incluindo a Al Qaeda de Bin Laden, para desestabilizar o governo liderado pelo Partido Democrático do Povo, comunista, e enfrentar Moscou. Desse caldo de cultura nasceria o Talibã, depois rebelado contra o favorecimento ao islamismo moderado, pró-americano.
A invasão de 2001, seguida por 20 anos de ocupação, só produziu um legado de morte, destruição e pobreza, em benefício de corporações norte-americanas e seus aliados locais, provocando uma guerra popular que reconduziu o grupo muçulmano ao poder. Não poderia ser mais retumbante o fracasso da “democracia representativa” em constituir uma alternativa decente para o povo afegão.
Apesar do esforço de Magnoli em passar o pano para a Casa Branca, não pode ser levada a sério uma análise que desconsidere o imperialismo como o principal vetor tóxico das relações internacionais desde o século 19, impondo ao mundo assimetrias e agressões que inevitavelmente desaguam em tragédias humanitárias, na paz ou na guerra.
(*) Texto publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, no dia 18 de setembro de 2021, sob o título “Réplica: Obcecado por anticomunismo, colunista omite papel histórico do imperialismo dos EUA“.