Revogação do teto de gastos. Combate à fome e à desigualdade social. Busca de uma nova via de desenvolvimento, com ênfase na reindustrialização. Reconstrução da democracia e punição aos golpistas. Defesa do meio-ambiente e dos povos originários. Compromisso de luta contra o patriarcado e o racismo. Política externa baseada na soberania nacional e na integração latino-americana. Ainda que, em um momento ou outro, os dois discursos oferecessem calmantes para o mercado, ficou evidente que Lula quis marcar seu retorno ao comando da república com uma agenda de esquerda.
Reiterou a necessidade de preservar a frente ampla formada para derrotar Jair Bolsonaro, mas esclareceu quem é o maestro da orquestra e qual a partitura que será tocada, se depender de sua vontade e empenho. Estabeleceu seu ponto de vista, no entanto, com razoável cautela. Não tocou, no Congresso, em temas sensíveis como o golpe contra Dilma Rousseff, a Operação Lava Jato e a tutela das Forças Armadas sobre o Estado. A primeira dessas três questões receberia uma citação no segundo discurso, já com a faixa presidencial.
Com os devidos cuidados discursivos, bateu de frente contra o golpismo bolsonarista, comparou-o ao fascismo e deixou claro seu rechaço a hipóteses de anistia, reiterando a “primazia da lei”, sem “espírito revanchista”. A mensagem foi explícita: a pacificação do país, sob sua liderança, não será buscada passando o pano nos crimes da extrema-direita, a serem apurados e punidos pelo sistema judicial.
Os dois discursos, de todo modo, se destinaram a determinar compromissos fundamentais, não a descrever as políticas principais para viabilizá-los. Sem maioria ideológica no parlamento, manejando uma coalizão de forças divergentes e até antagônicas, Lula aparentemente considerou mais eficaz começar pelos fins aos quais subordina seu governo, não pelos meios que seriam necessários para efetivá-los.
Para os porta-vozes da burguesia ficarem abespinhados, claro que bastou a reiteração desses objetivos centrais, em uma hierarquia na qual as finanças públicas se subordinam à justiça social, com a política econômica baseada na democratização da renda e do consumo, sob um Estado que retoma seu papel dirigente. As polêmicas mais relevantes, contudo, e dentro da própria aliança de governo, serão certamente sobre as medidas para reverter estruturalmente o modelo econômico que vem gerando os descalabros desmascarados pelo novo presidente.
Ricardo Stuckert
Luiz Inácio Lula da Silva, minutos depois de receber a faixa e assumir pela terceira vez a Presidência da República
Os governos encabeçados pelo PT entre 2003 e 2016 já abrigavam diversos partidos, de fato, mas a lógica era a da coalizão presidencial, com esmagadora presença de ministros petistas e controle quase absoluto sobre áreas mais estratégicas. Agora é diferente. Para recorrer a um termo da política francesa, a terceira administração Lula será de coabitação entre dois projetos profundamente distintos, que se uniram para derrotar Bolsonaro, restaurar a VI República e eventualmente enfrentar os problemas mais imediatos do povo. Além do Banco Central, dessa vez também a pasta do Planejamento estará nas mãos de liberais, além da Indústria e Comércio, por exemplo, para não falar da Defesa e das Comunicações.
Um desses projetos supostamente considera que somente será possível cumprir os compromissos anunciados por Lula se houver transformação estrutural, com a superação do neoliberalismo, a autonomia do Brasil diante das potências capitalistas e a hegemonia das classes trabalhadoras sobre o processo político. O outro se limita, em suas intenções, à higienização das instituições da Constituição de 1988, no máximo incorporando questões ambientais e pautas referentes a direitos humanos, mas preservando os mesmos paradigmas para o desenvolvimento capitalista do período Temer-Bolsonaro.
Desde o final do processo eleitoral, especialmente através da imprensa monopolista, setores do liberalismo desataram forte batalha em defesa do atual modelo econômico, tentando pressionar e condicionar o futuro governo, como pudemos acompanhar na discussão sobre a PEC da Transição. Provavelmente sob a preocupação de preservar a frente ampla, talvez também pela infiltração de posições liberais em algumas de suas alas, o PT não conseguiu exercer o papel de contraponto aos segmentos mais conservadores da coalizão. O presidente Lula, que poderia ficar mais confortável em uma posição de árbitro entre as correntes da coalizão, diversas vezes acabou tendo que exercer o papel de porta-voz das posições mais progressistas.
Voltou a fazê-lo durante a posse, tanto no discurso perante o parlamento quanto nas palavras que dirigiu à gigantesca multidão concentrada diante do Palácio do Planalto. Caso raro na história política, a frente ampla estaria sob a direção da esquerda e o presidente talvez aposte que seja possível trazer os liberais para as posições que defende. Se essa aposta dará certo, os próximos meses dirão.