O deslocamento do embate político para essa forma particular de esgrima lexical que tem recebido o inadequado nome de “narrativa” fica naturalmente exacerbado em situação de pandemia.
Basta lembrar quanta tinta, papel e pixels foram gastos em discutir não o golpe, mas a “narrativa do golpe”.
Nesta semana o vocabulário dos pobres mortais que acompanham o noticiário (ou seria o opiniário?) enriqueceu-se com mais dois acepipes.
O fato por trás da notícia parecia simples: Gilmar Mendes avisou as forças armadas de que o desastroso manejo da pandemia poderia, em tese, levar o governo a ser acusado de genocídio e os militares corriam o risco de ficar, como instituição, associados a isso.
O que era um aviso de amigo, se transformou num campeonato de ilusionismo verbal. Primeiro pela forma surpreendente como o Alto (?) Comando vestiu a carapuça ao pedir que o ministro seja processado por difamação e calúnia. E a seguir por aqueles que, defendendo ou criticando, passaram a discutir a hipérbole.
Nosso cardápio lexical vai se ampliando, mas às custas de muitos maus-tratos. Vejamos. Hipérbole, além de uma curva geométrica, denomina uma figura de linguagem que consiste em expressar de maneira evidentemente exagerada uma certa ideia.
À palavra não se associam as noções de falsidade ou mentira, apenas a de algum exagero. Bastaria para concluir que, se não é falso nem mentiroso, não pode ser calunioso ou difamatório.
Por sua vez genocídio, no sentido dicionarizado ou na definição legal, é o extermínio deliberado, total ou parcial, de um grupo social, racial ou étnico. Por extensão pode significar ainda destruição massiva de populações ou setores sociais.
Não é preciso voltar às dificuldades do general da pandemia com a linha do Equador para avaliar que quase 80 mil mortes, cada vez mais localizadas entre os pobres e, portanto, pretos podem ser consideradas um genocídio no sentido estendido.
Mas quando o Presidente da República veta 16 artigos de lei destinada a defender os povos indígenas e quilombolas, negando-lhes a proteção de seu território, o acesso a água potável, produtos de higiene e atendimento hospitalar, estamos diante de um genocídio no seu preciso sentido legal.
Enquanto isso as vozes que gostam de se apresentar como moderadas pedem que não se fale alto porque senão os militares podem ser tentados a … dar um “golpe”.
Entre os historiadores, ao menos os da velha guarda, há o entendimento de que narrativas são importantes, mas os fatos – como as pessoas – não devem ser torturados.
(*) Professor Titular do IAU USP São Carlos
Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro vetou 16 artigos de lei destinada a defender os povos indígenas e quilombolas