Um leitor amigo e atento considerou, com certa razão, que o título da coluna anterior, Saudades do bolsonarismo, era um equívoco na medida em que só se pode ter saudade do que já foi, e o bolsonarismo continua presente no cotidiano dos brasileiros.
O que me interessava destacar, entretanto, não era a evidente marca e presença do bolsonarismo. Aqui destaca o bolsonarismo entendido como manifestação especificamente brasileira da tendência internacional de uma modalidade de neofascismo que recombina e atualiza atributos do neoconservadorismo alt-right (crítica aos costumes, negacionismo, anti-intelectualismo, racismo e misoginia) com a radicalização do laissez faire econômico hegemonizado pelo capital financeiro. Esse, face a todas as evidências, veio para ficar, com ou seu a liderança do ex-capitão.
A intenção era chamar atenção para a rapidez e virulência com que alguns órgãos da grande imprensa abandonaram o aparente consenso da defesa da ordem democrática para acelerar um movimento em pinça, que naturaliza as posições e ações dos principais representantes do bolsonarismo e de crítica amargurada ao “passadismo” das ações do governo Lula, quando não ao “ressentimento” ou “revanchismo” presidencial.
É fato que a má vontade (para ser generoso) de boa parte da imprensa corporativa já se manifestava na denominação de “PEC da gastança” ou na insistência em chamar compromissos de governo de “promessas de campanha”, naturalizando assim a ideia do estelionato eleitoral.
Mas o choque da violência do 8 de janeiro, o impacto midiático da espetacularização do vandalismo, na esteira da invasão do Capitólio norte-americano, com a evidência escancarada do apoio militar e a indisfarçada cumplicidade da segurança do governo do Distrito Federal, pareceram oferecer uma trégua e apresentar as bases para uma possível frente ampla em defesa do estado democrático de direito.
A ilusão logo foi desfeita e talvez o momento de virada tenho sido a crítica aberta de Lula ao patamar escandaloso dos juros reais mais altos do planeta, defendidos de maneira arrogante pelo Banco Central, como remédio necessário a uma inflação que não é de demanda.
Desde então, um grupo de empresários e economistas, inclusive respeitados nomes de trajetória internacional, usaram adjetivos ainda mais fortes do que os brandidos pelo presidente para desqualificar a política de juros.
A isso se somou aquele delicioso ato falho da Pesquisa Quaest, em que 82 operadores do cassino da Faria Lima indicaram Roberto Campos Neto como seu político preferido, enterrando assim o mito do Banco Central técnico.
Ricardo Stuckert/PR
Presidente Lula parece ter conservado boa parte do seu instinto político
Por fim, a pá de cal, ao menos até o momento, veio com a divulgação, no início deste mês, de pesquisa DataFolha em que 80% dos entrevistados apoiam a posição de Lula. O tema juros ficou de difícil manejo oposicionista. Por um lado, a segmentação mostra que o apoio a Lula, absolutamente expressivo pelos números, é ainda maior entre os mais pobres, ou seja, a sua base de apoio fundamental. O petista está assim expressando a posição não apenas de empresários ou economistas, mas daquela parcela que o apoia majoritariamente.
Por outro, porque espantosos 77% dos votantes em Bolsonaro compartilham da crítica, que não tem mais, portanto, como ser qualificada de radical ou partidária.
Isso não resolve o problema, pois o Banco Central já deu mostras de não ouvir ninguém além dos beneficiários desse brutal processo de concentração de renda viabilizado pelos juros estratosféricos. Além disso, a provável consequência da manutenção arrogantemente ameaçada das taxas atuais será uma perigosa desaceleração da atividade econômica, trazendo mais água para um moinho já agitado pelas incertezas internacionais.
A torcida é clara para que uma sensível piora da situação econômica possa provocar estragos na avaliação do governo e em particular do presidente. Lula no discurso em torno dos 100 dias de gestão recuperou um episódio com Celso Furtado, nos anos 80, em que o economista lhe lembrava que as críticas da esquerda impediam que ele fosse convencido pelas posições da direita.
Atualizando a situação das críticas, Lula sugeriu aos ministros que agradeçam os agouros “pois essas pessoas estão dizendo exatamente o que não devemos fazer”.
Apesar do cerco, o presidente parece ter conservado boa parte do seu famoso instinto político. A viagem à China pode trazer resultados comerciais e de investimentos necessários. E o anúncio do ministro da Comunicação, Paulo Pimenta, de que a partir de seu retorno de Pequim o presidente fará lives semanais, mostra que mais do que nunca, a batalha política se dá no campo da comunicação.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.