Diz a sabedoria popular que o mundo dá voltas. Os gaiatos agregam que às vezes dá cavalo de pau. E um velho professor costumava dizer que se o Windows, que é um plágio, tem milhões de cores, não é razoável acreditar que a vida seja em branco e preto.
Na semana marcada pela volta de Lula a Brasília para tomar a frente das negociações com o Congresso, pareceria a um observador externo que, no computo geral, há empate num jogo que, até agora, se dá fundamentalmente em três frentes internas e uma externa.
Aqui dentro há o puxa-empurra com o tal do “mercado”, ou seja, com o capital financeiro, seus operadores na Faria Lima e seus jornalistas amestrados na grande mídia. São aqueles que defendem a sacrossanta “responsabilidade fiscal”, nome elegante para o critério de que os gordos juros para os especuladores são muito mais importantes do que um prato de arroz e feijão para os pobres, mas já estão “precificando” Haddad na economia.
Na segunda frente, o Centrão, cada vez mais firme no controle do Congresso, esperou por Lula para negociar frente a frente os limites e sobretudo o preço da tal PEC da transição. Lira sabe que não pode bater de frente com quem ganha a eleição. Por isso foi dos primeiros a reconhecer a vitória de Lula.
E Lula sabe que não pode entrar em campo perdendo no Congresso. Já viveu isso com Severino Cavalcanti em 2005, e assistiu, obrigado por Gilmar Mendes a ficar fora do campo, a Eduardo Cunha levar Dilma para o matadouro, em 2016. Lula e Lira são profissionais e sabem que o melhor resultado para ambos é o empate.
Mais complicada é a terceira frente. A ilusão de que os militares da ativa não compartilharias o golpismo dos generais políticos era só isso mesmo, uma ilusão. A complacência inicial e o indisfarçado estímulo depois, às manifestações frente aos quarteis tem por objetivo manter forte a ameaça à posse de Lula.
É preciso muito malabarismo analítico para negar que a indicação de José Múcio Monteiro para o Ministério da Defesa foi uma derrota de Lula frente às Forças Armadas. Claro que se pode argumentar com o perfil conciliador e com os serviços prestados pelo ex-deputado na Secretaria de Relações Institucionais de Lula no seu segundo mandato.
Twitter/Lula – Foto de Ricardo Stuckert
Os EUA se opor a um golpe militar de direita certamente não é um episódio frequente
Mas os elogios de Mourão e o fato de ter sido o ele próprio a anunciar a indicação, não deixam dúvidas sobre quem perdeu, neste caso, o braço de ferro. Nem Haddad nem Flávio Dino, dados como absolutamente certos no ministério, falaram como ministros antes do anúncio formal por Lula. Múcio sim.
Duas perguntas importam neste frente. A primeira é quanto ao nível de impunidade que terá feito parte da negociação (ou imposição). Pazuello, assim como Eduardo e Flávio Bolsonaro, noves fora as Zambelli da vida, têm imunidade parlamentar. Mas Bolsonaro, os filhos menores e outros integrantes da familícia, não.
O país vai reincidir na sua tradição de perdoar corruptos e conspiradores em nome da “pacificação”? Está difícil acreditar que não. Mas também o está prever que força terá o governo Lula se não recompuser pelo menos a ideia de que militares devem obedecer ao poder civil. Para não falar das cada vez menos explicadas relações entre forças armadas, tráfico de drogas e multiplicação das armas em posse do crime organizado.
A segunda pergunta é porque os militares têm força para impor ministro de defesa e um provável acordo de imunidade para os seus generais golpistas, mas não para dar o golpe que é o seu confessado objeto de desejo?
A resposta, mostrando que o mundo dá muitas voltas e tem muitíssimas cores, está no grande irmão do norte. Poucas pessoas informadas negarão que vieram de Washington, a partir do anúncio do pré-sal, as ações, LavaJato incluída, que resultaram na sequência Temer-Bolsonaro. Da mesma forma, só a desatenção ao noticiário ou negacionismo de esquerda permitiria discordar de que a posição estadunidense é o maior obstáculo aos generais golpistas.
Lula pode gostar mais ou menos de Biden, mas vai visitá-lo antes mesmo da posse. E certamente será recebido em grande estilo. Afinal, Trump é aliado de Bolsonaro e a regra de ouro da política internacional é que o oponente de meu inimigo é meu amigo.
Lula tem investido muito tempo e energia da transição no fortalecimento de sua imagem internacional. Ele sabe que esta quarta frente do jogo, em que se move com desenvoltura, será fundamental para garantir o equilíbrio interno.
Em termos de geopolítica panamericana, não posso garantir que seja a primeira vez que os EUA se opõem a um golpe militar de direita, mas esse, certamente, não é um episódio frequente.
(*) Carlos A. Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos