“A Lei de Cotas é o pagamento de uma dívida que o Brasil tem, de 350 anos de escravidão. A Lei de Cotas permite que a gente recupere a possibilidade de enfrentar o racismo, de enfrentar o preconceito, enfrentar a marginalização, de dar ao povo periférico a oportunidade de estudar, de ter direitos neste país. E você não sabe o prazer que eu tenho de ter sido um presidente que não teve um diploma universitário e que tirou a universidade brasileira de 3 milhões e meio de estudantes [universitários] para 8 milhões de estudantes. Você não sabe o orgulho que eu tenho de saber que o menina negra da periferia, filha de empregada doméstica, de patrulheiro, de lixeiro, tem filho fazendo engenharia, medicina, diplomacia. Essa é a coisa importante que nós temos que fazer: dar às pessoas que durante tanto tempo não tiveram, o direito à cidadania.”
Esse trecho de uma resposta de Lula ao monocórdio candidato do Partido Novo (sic) foi, talvez, um dos poucos minutos aproveitáveis no festival de horrores em que a Rede Globo permitiu que se transformasse o mal chamado debate presidencial.
E registre-se que não há aí senão a reiteração do mais básico dos argumentos a favor das cotas: o do resgate de uma dívida histórica. Lula sequer argumentou sobre a importância de ampliar o potencial de produção de ciência tecnologia e inovação como condição essencial de reposicionamento do país no sistema econômico internacional, marcado pelo chamado capitalismo cognitivo.
Tampouco argumentou, como poderia, frente aos pressupostos meritocráticos de seu interlocutor, que o candidato que se apresenta como “um cidadão como qualquer outro” tem o maior patrimônio pessoal declarado entre os candidatos e é genro do potentado do varejo, Abílio Diniz. Ou seja, faz parte daquele percentual da população que mal paga impostos, porque a maior parte de sua renda vem de dividendos, isentos desde os anos 90, quando FHC nos vendeu a ideia de que quanto menos os ricos pagassem impostos mais empregos gerariam.
Mas seria inútil seguir enumerando todas as questões relevantes para o país que não apareceram no debate. Porque ele não foi efetivamente montado para isso. Mais de um analista já indicou que se a Globo considerasse o debate relevante não o deixaria para iniciar após o final da novela.
Ricardo Stuckert
‘De que tudo está tão ruim que é melhor acabar logo com isso’
Não tive acesso aos dados numéricos de audiência, mas não é difícil responder à pergunta sobre o setor da população brasileira que pode se dar ao luxo de assistir um programa que começou às 22:30 e avançou madrugada adentro.
Apoiada na tradição de realizar o último debate presidencial antes das eleições e no prestígio de seu principal âncora, pode ser que a rede tenha avaliado incorretamente o resultado do debate para o seu próprio prestígio.
Ao permitir que o “debate” fosse transformado numa pantomina dominada por um falso padre, a Globo abriu a possibilidade de um novo “voto Cacareço”. Para quem nunca ouviu falar, é a referência a uma fêmea de rinoceronte “eleita” para a Câmara Municipal paulistana em 1959, como voto de protesto contra os políticos da época. Em tempos mais recentes, foi o “voto Tiririca”.
Talvez tenhamos um “voto no padre de festa junina” ou, ao contrário, como sugeriu um amigo, um efeito acelerador do primeiro turno, a partir de uma sensação de esgotamento, de que tudo está tão ruim que é melhor acabar logo com isso.
Quando escrevo é impossível prever. Em breve saberemos. Bom voto a todos!
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos