Entender o que está acontecendo na transição do governo não é fácil para nós, simples mortais, sem acesso aos bastidores do poder e dos contrapoderes. Dependemos da grande mídia e ela não é um elemento neutro, comprometido com a objetividade das informações, mas parte ativa do jogo e das negociações.
Seu poder não se mede em número de votos na Câmara ou no Senado, mas na sua ainda poderosa – mesmo em tempos de redes sociais – capacidade de formatar a chamada opinião pública, especialmente nas classes médias urbanas.
Assim, não temos o direito de saber que entre julho de 2020 e junho de 2021, o país (eu e você) pagou 284 bilhões de reais de juros da dívida pública ao famigerado mercado nem que de novembro de 21 a outubro de 22, o preço da tal responsabilidade fiscal subiu para 592 bilhões. Embora estas informações estejam disponíveis no Relatório de Acompanhamento Fiscal da Instituição Fiscal Independente, setor do Senado Federal.
Esses números, aliás, são considerados subestimados pela ONG Auditoria Cidadã da Dívida, que aponta que aos juros diretos deve-se agregar o custo da chamada rolagem e que esses valores foram a R$ 1.9 trilhão só em 2021, um aumento de 40% em relação a 2020, que já havia sido superior em 33% a 2019.
Bom como a maior parte de nós, habitante da planície, é incapaz de saber quanto é isso, podemos usar o velho e bom recurso da comparação.
O valor total mais alto das versões até agora negociadas da PEC da Transição é de R$ 200 bilhões. Ou seja, pouco menos de um terço dos juros pagos segundo o cálculo da assessoria do Senado e pouco mais de um décimo do que a Auditoria Cidadão estima que o “mercado” recebeu em 2021.
Então, ficamos assim combinados: pagar R$ 600 bilhões por ano aos especuladores financeiros se chama “responsabilidade fiscal” e pagar metade de um salário-mínimo para brasileiros abaixo da linha de pobreza é “populismo” e “irresponsabilidade fiscal”.
Pagar o mercado financeiro é uma decisão “técnica” e possibilitar o prato de comida na mesa do pobre é uma decisão “política”, ficando claro pelo tom com que essas palavras são usadas que “técnico” é bom e “político” é perigoso.
Como isso parecia pouco, ficamos sabendo que a PEC da Transição já não tem mais esse nome. Ela agora é a “PEC do Fura Teto”, como se o governo que ora se esvai não tivesse furado o teto em todos os anos de seu mandato. Ou na versão da Folha de São Paulo, para impressionar mais o moralismo de seus leitores, a “PEC da Gastança”. Para que fique claro que R$ 600 bi para os sócios do senhor Frias é “responsabilidade” e prato de comida para pobre é “gastança”.
Adriano Makoto Suzuki/Flickr
Todos sabiam que o caminho de Lula não seria nada fácil
Então o mercado, que é um ser muito sensível e cujos estados de espírito a grande mídia sempre alardeia, ficou muito “nervoso” com a indicação de Fernando Haddad, um político (uau, quem diria?), para o Ministério da Fazenda. E o curioso é que nem a indicação do ex-banqueiro Gabriel Galípolo para a Secretaria Geral do Ministério tranquilizou o “mercado”.
Fica parecendo que não basta ser “técnico”. É preciso ser um “técnico” que defenda que pagar R$ 600 bi para a faria Lima é uma decisão “técnica” e responsável e que pagar R$ 600 (9 zeros a menos) para a mãe de família com fome é “político” e irresponsável.
Nos últimos dez dias, a diplomação de Lula e Alckmin no Plenário do Tribunal Superior Eleitoral deveria, em tese, ter marcado o final de qualquer eventual dúvida ou recurso face ao resultado das eleições.
Difícil acreditar em mera coincidência no fato de que, na mesma noite, a sede da Polícia Federal em Brasília tenha sofrido tentativa de invasão, deixando como saldo cinco ônibus e vários automóveis queimados e… nenhuma prisão.
Para justificar tanta condescendência, um constrangido Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, cujo governador é um bolsonarista de primeira hora, confessava frente às câmeras que nada podia fazer porque os “manifestantes” estavam acampados em área militar.
As redes sociais não demoraram a resgatar fotos que mostram o contraste entre a respeitosa, quando não cúmplice, atitude dos policiais militares com aqueles que tentaram invadir a sede da Polícia Federal e a violenta repressão a professores em defesa de seus salários.
Na Alemanha foram presas e caracterizadas como terroristas dezenas de pessoas acusadas de conspirar para a derrubada do governo. No Brasil, continuamos, na melhor das hipóteses falando de “atos antidemocráticos”. Quando não de patriotas!
Todos sabiam que o caminho de Lula não seria nada fácil. Mas agora é claro que a tradicional trégua dos cem dias não se aplica a quem adota a perspectiva “radical” de que o pobre precisa estar no Orçamento e o rico precisa pagar Imposto de Renda.
(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.