A demissão, à distância, do comandante do Exército seria manchete em qualquer circunstância. Mas agregue-se que o presidente da República tomou essa decisão com apenas 21 dias de mandato, que o agora ex-comandante tinha apenas 24 dias no cargo e a notícia fica ainda mais estimulante para o florescimento de versões, interpretações e análises.
As redes pululam num gradiente que vai de eufóricas saudações de que a transição terminou e Lula finalmente começou a governar até prognósticos mais preocupados, sobretudo pelo histórico do sucessor do comandante.
Quanto ao ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, o leque vai da admiração incontida da maioria dos comentaristas da Globo News aos sommeliers de Ministério, que há uma semana exigiam a sua demissão e agora estão caladinhos.
O sumário do que Múcio chamou, num curioso eufemismo ortopédico, de “fratura de confiança”, começou quando o general Júlio César de Arruda assumiu o comando do Exército quatro dias antes da posse de Lula, num gesto claro de agravo ao presidente, embora vendido pela mídia corporativa como fruto da habilidade do ministro da Defesa.
A escalada seguiu no pós 8 de janeiro, quando o general disse a Flávio Dino, ministro da Justiça, que ele não iria prender ninguém no acampamento golpista em frente ao quartel-general do exército.
O arroubo, feito de dedo em riste e apoiado em três fileiras de tanques, tinha por objetivo permitir que os peixes mais graúdos da aventura golpista escapassem ilesos. Na quinta feira (19/01), Alan Diego dos Santos, um dos terroristas confessos da tentativa de explodir um caminhão de combustível, confessor que recebeu a bomba no acampamento.
Arruda também se negou a obedecer, “antes de apuração prévia” a determinação de afastamento do major Paulo Jorge Fernandes da Hora, comandante da Guarda (sic) Presidencial, que além de ter desmobilizado a guarnição, aparece em vídeo batendo boca com agentes da tropa de choque da Polícia Militar do Distrito Federal enquanto o Palácio era depredado pelos bagrinhos bolsonaristas.
A cereja (conhecida) do bolo foi a desobediência à ordem de sustar a nomeação do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid para o batalhão de Ações de Comandos de Goiânia. O Batalhão tem militares treinados em assalto e fica localizado estrategicamente em relação a Brasília. Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, foi recentemente apontado como operador de caixa dois dos cartões corporativos e acompanhou Bolsonaro na retirada para a Flórida.
Razões para configurar o que Gleisi Hoffmann caracterizou acertadamente como “insubordinação” não faltaram, portanto. E insubordinação é, como se sabe, o rompimento da regra de ouro do estamento militar.
Ricardo Stuckert
Lula nomeou o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva como o novo comandante do Exército
Não se tornou público se houve algum outro fato que motivasse a decisão, tomada num telefonema entre Lula e Múcio às 6 horas da manhã deste sábado (21/01).
Curiosamente as decisões mais impactantes de Lula em relação à questão militar foram tomadas de fora de Brasília.
A rejeição do Decreto de Garantia de Lei e Ordem (GLO) que virtualmente entregaria o controle de Brasília a um general e a opção pela intervenção federal na segurança do Distrito Federal foi decisão tomada em Araraquara, em visita presidencial à cidade vitimada pelas enchentes.
A demissão do comandante do Exército foi transmitida a Múcio desde Boa Vista, capital de Roraima, onde estava a comitiva presidencial para conhecer in loco a condição dos Yanomanis, cujas terras estão invadidas por garimpeiros ilegais e cuja população sofre um processo caracterizado como de extermínio genocida.
Lula segue um grande fabricante de símbolos. Os contragolpes à insubordinação militar vêm de onde o presidente deve estar: ao lado dos setores sofridos da população.
Mas não basta fabricar símbolos. O general Tomás Ribeiro Paiva, comandante militar do Sudeste, realizou na quarta-feira (18/01) o primeiro discurso – cujo vídeo obviamente viralizou – de um general em enfática defesa da obediência militar ao resultado das eleições. Ou o coelhinho da Páscoa resolveu antecipar seus presentes ou a demissão de Arruda já vinha sendo costurada nos bastidores.
A trajetória de Paiva, ex-chefe de gabinete de Villas Bôas, desaconselha os afoitos que saíram cantando em prosa e verso que a transição acabou e Lula começou a governar.
Os militares brasileiros, apesar dos quatro anos de desastre, não tiveram as suas Malvinas.
Os donos do PIB, escondidos atrás do codinome mercado, ainda ficam mais horrorizados com a menção aos pobres no orçamento do que com a fraude das Lojas Americanas.
Os industriais paulistas, mesmo os que já não fabricam mais nada, ainda pedem a cabeça de Josué Gomes por ter assinado um manifesto em defesa do estado de direito.
A transição do Brasil para a democracia está apenas começando. O braço de ferro seguirá por um bom tempo. Lula tem vencido, mas vai continuar precisando de ajuda.