Tudo se passa como se o relativamente heterogêneo arco de apoio que levou Luís Inácio Lula da Silva à apertada vitória no segundo turno acreditasse que seu mandato será respeitado e terminará exitoso graças a seu reconhecido carisma e a sua lendária habilidade política.
Mas os nove meses dessa tentativa de reconstruir ao menos a promessa de um mínimo de equilíbrio social e de respeito ao, para a maioria da população, fantasmagórico estado democrático de direito, mostram que a gestação ocorre com riscos e sobressaltos diários. E sem garantia real de chegar a bom termo.
Lula está sob o cerco dos ocidentalistas mais radicais – ou simplesmente pagos – que insistem num alinhamento automático aos interesses antirrussos na guerra na Ucrânia, apesar de que a avaliação da política externa brasileira venha se confirmando claramente nas últimas semanas.
Mesmo depois do vexame no Canadá, nossa imprensa não se deu ao trabalho de destacar que pesquisas feitas por institutos independentes na Ucrânia mostram que 78% dos ucranianos creditam a Volodymyr Zelensky a corrupção no país e nas Forças Armadas.
O ridículo desse front do cerco foi exposto pela pseudo colunista Eliane Cantanhêde que, do alto de sua consabida sofisticação intelectual, creditou as oito interrupções por aplausos ao discurso do presidente na abertura da Assembleia Geral da ONU ao fato de que “Lula parou de falar besteira”.
A serem corretas as informações sobre a fatia da Globo no financiamento da propaganda estatal, seria interessante que os responsáveis pela política de comunicação do governo se dessem conta de que Globo e, sobretudo, seu canal de assinantes, a GloboNews, dedica muito mais tempo a falar mal de Jair Bolsonaro do que a destacar as políticas do governo Lula.
Só pode considerar que é a mesma coisa quem se esqueceu da aposta na terceira via ou acredite que a Globo desistirá dela em 2026. Basta lembrar que os achaques de Arthur Lira contra o governo foram largamente creditados à “falta de coordenação política” do governo, não apenas pela Globo, mas pelos jornalões em geral.
Assim, em lugar de condenar a voracidade amoral do cacicado do centrão, exigindo cargos e verbas de um governo que combateu na eleição e chantageou em cada votação importante, a nossa imprensa fez coro, durante semanas à condenação da “incapacidade do governo Lula” em “garantir a aprovação” de suas propostas.
Sem abrir mão de insinuar uma certa repulsa moral quando o governo libera emendas para garantir aprovação de projetos, a grande imprensa torna difícil acreditar que a torcida não seja pelo impasse.
Alguém já levantou o curioso estilo que tem impregnado o noticiário sobre as surpreendentes melhorias nos principais indicadores econômicos, sempre acompanhado por algum “mas…”.
Ricardo Stuckert / PR
Alguns acreditam que Lula foi eleito para satisfazer os projetos de cada grupo de interesses
O limite do despudor, de uns e de outros, foi a tentativa de assalto ao Ministério da Saúde, tratada por boa parte da imprensa como um problema de Lula e não como uma inaceitável agressão a toda a população e à memória das centenas de milhares de mortes desnecessárias durante a desastrosa e corrupta gestão da pandemia.
Porque a vida não cansa de proporcionar surpresas, coube ao Estadão, aquele mesmo das escolhas muito difíceis, estampar em editorial que “nada parece saciar a voracidade do centrão por sinecuras”, o que “seria um problema exclusivo de Lula” se não fosse “o fato de que a chantagem de um grupo de parlamentares prejudica todo o país.”
Mas afinal, que a oposição parlamentar e os aliados a contragosto do segundo turno fariam oposição mais ou menos aberta não deveria surpreender ninguém.
O que talvez não fosse tanto de esperar seria o fogo mais ou menos amigo dos que acreditam que Lula foi eleito não para implementar o programa que apresentou ao país, mas para satisfazer os projetos de cada grupo de interesses ou indivíduo que continua sabendo melhor do que o presidente e sua equipe o que ele “deveria fazer”.
Assim, o aviso claro de Lula de que gênero e etnia não seriam critérios para a indicação ao Supremo não arrefeceu a campanha pela indicação de uma mulher negra nem parece ter despertado a atenção para o fato de que as maiores plataformas institucionais dessa reivindicação são Folha e Globo. Que, por óbvio, não pretendem incluir mulheres negras no comando de seus jornalismos.
Os casos recentes, da “assessora” do Ministério da Igualdade Racial que postou “gracinhas” em linguagem neutra contra os são-paulinos europeus e “patetes” e da viralizada dança do “batecu” num evento do Ministério da Saúde, são indicadores claros de que o cerco também pode vir de dentro e independe de boa ou má vontade.
Em política não importam as intenções e sim os efeitos. O post da assessora não foi “infeliz” como disse um colunista petista, nem coisa “de jovem”, como disse outro. Foi socialmente preconceituoso e politicamente estúpido. E a pergunta que fica é o que estava fazendo a assessora “jovem” e capaz de declarações “infelizes” num Ministério que obviamente seria foco de atenção e ataques de todo o antilulismo, pela sua natureza e pela figura de sua titular.
A recente eleição dos Conselhos Tutelares, em que as posições progressistas ou simplesmente humanitárias em relação aos direitos de crianças e adolescentes foram varridas pelo proselitismo – e organização – da direita religiosa, deveria servir de alerta do que pode estar pela nossa frente.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.