Os dicionários definem intentona como plano insensato; ataque imprevisto; conluio ou motim. Talvez apenas o último sentido se aplique aos acontecimentos de 8 de janeiro.
Eles provocaram manchetes em todo o planeta e uma mobilização sem precedentes de parte da mídia nacional, mas parece mais sensato compreendê-los como mais um momento de um golpe em marcha desde 2013 e que, ante as evidências, ainda não foi derrotado.
É preciso evitar o ufanismo de que a intentona foi contida e derrotada, que as instituições prevaleceram e a democracia está salva. Sejam equívocos sinceros ou quinta-colunismo na veia, o que importa é seu efeito deletério sobre a imperiosa necessidade de manter o combate, por todas as vias, incluída a mobilização popular, ao golpe ainda em andamento.
A ideia de um plano insensato urdido por hordas radicais é muito tentadora face às imagens carregadas de vandalismo e de aparente destruição pela destruição, mas não se sustenta.
A reconstrução dos fatos a partir das imagens das câmeras de segurança e dos depoimentos mostra que a sanha destrutiva dos energúmenos que espalhavam selfies auto incriminatórias servia para distrair a atenção do público enquanto outros invasores, que evitavam as câmeras e não faziam selfies, sabiam exatamente onde e o quê estavam procurando, dos discos rígidos dos computadores do fotógrafo oficial de Lula às armas guardadas na sala do Gabinete de Segurança Institucional.
Por fim, nada mais distante da ideia de um ataque imprevisto. A tentativa de invasão da sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula e Alckmin; a resistência do Exército a permitir a desmobilização dos acampamentos; a tentativa canhestra de explodir um caminhão de combustível, para não falar da temperatura das redes sociais bolsonaristas, mostrava que havia algo no ar além de ônibus fretados.
Depoimentos do melífluo Ibaneis e do ex-comandante da Polícia Militar do Distrito Federal coincidem em que o Exército teria colocado tanques e tropas para impedir que os golpistas acampados em frente ao quartel-general fossem presos.
Fato filmado e independente de depoimentos é que as forças de elite do Exército encarregadas de proteger o Palácio do Planalto foram desmobilizadas e não compareceram para exercer seu papel.
Nas avaliações dos sommeliers de golpe, aqueles que se divertem dizendo, do conforto de suas poltronas, o que o Lula deveria fazer ou quem ele deveria demitir, há dois extremos que se tocam.
De um lado, os que o acusam de ter abandonado o recurso à GLO, previsto na Constituição e consolidado pelos antecedentes, por uma intervenção civil que ninguém sabe onde vai dar.
Agência Brasil
Destruição causada por bolsonaristas no Congresso, STF e Palácio do Planalto foi parte de um golpe que ainda está em andamento
De outro, os voluntaristas radicais ou os teóricos da insurreição molecular que acusam Lula de tibieza por não peitar todo o Comando das Forças Armadas, na cara e na coragem.
O tempo dirá. Mas tendo a concordar com a desconfiança de Dino e Lula em entregar o controle da Capital Federal a um general. Afinal, se algum manifestante fosse morto a culpa seria de Lula e não do general encarregado. E também com sua percepção de que o desaparelhamento do Estado e das Forças Armadas não se dará por rompantes heroicos. Especialmente quando boa parte dos outros setores membros do consórcio golpista continuam ativos no antilulismo.
Com menos de 15 dias de governo e um brutal atentado pelo meio, vários órgãos de imprensa continuam “repercutindo” a avaliação negativa do mercado às propostas econômicas do governo. Mercado e imprensa que parecem ter achado normal que os três homens mais ricos do país tenham deixado escapar um erro de 20 bilhões [alguns dizem que pode chegar a 40] no balanço de uma de suas empresas.
Mas, por falar em Forbes, o prêmio ignóbil da semana continua com a Folha que se deu ao luxo de vazar a opinião de um ex-ministro de defesa que, em off, segredou que os generais estão descontentes com Lula! E que este teria sido muito inábil e “cortado pontes”.
Curioso descobrir que os generais são tão sensíveis e se ofendem quando o presidente da República afirma que não se sente seguro só porque a tropa que deveria protegê-lo deserta ou porque militares da ativa prometem dar-lhe um tiro.
Desaparelhar o Estado e reconduzir as Forças Armadas [e policiais] ao seu papel constitucional é uma tarefa que talvez nem mesmo Lula, com seu instinto e experiência, consiga levar a cabo.
Mas só há chance se tivermos claro duas coisas. Não foi intentona, foi mais um passo num golpe que vem sendo cuidadosamente construído e cujos mentores ainda não desistiram. E sem uma permanente e crescente mobilização popular em defesa da democracia, todos os dias, em todos os âmbitos, nem Lula conseguirá freá-lo.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.