Lula não é perfeito, a força de seus improvisos sempre carrega riscos, o novo governo ainda carece de uma política de comunicação e o bate cabeça é inegável.
Mas, recém cumpridos os 100 dias da trégua que não existiu, o desempenho do presidente e do governo estão muito longe de receber uma avaliação, senão isenta, ao menos responsável por parte da mídia corporativa brasileira.
Os escassos 15 dias desde que Lula desembarcou na China tiveram de tudo para todos os gostos, com exceção de análises mais fundamentadas e menos ideológicas.
A confraria dos jornalistas amestrados do “mercado” e do império do sol poente não teve dúvidas em decretar o fim das ilusões de Lula com algum protagonismo internacional, a inexorável queda de sua popularidade interna e a provável debacle da situação econômica.
A ex Folha de São Paulo, caminhando celeremente para formar com a Jovem Pan e a CNN o Triângulo das Bermudas do jornalismo brasileiro, trouxe mais uma relevante contribuição para a história dos editoriais infames, cravando naquele em que analisa a proposta do novo arcabouço fiscal o jamesbondiano título de “Licença para gastar”.
Verdade que hora e a maneira da equipe econômica divulgar a proposta de coibir a burla do imposto de importação de produtos chineses oscilou entre a ingenuidade e o amadorismo.
Mas o compromisso da Shein de abandonar o procedimento desde que isso seja exigido as demais empresas de comércio online e, sobretudo, a promessa de instalação, no Brasil, de um centro de distribuição para a América Latina, com a transferência progressiva da fabricação para empresas brasileiras, deixou os “analistas” gaguejantes.
A sabujice da mídia diante da reação estadunidense à recepção da China a Lula e a suas manifestações sobre a nova ordem internacional passou vexame. De Guga Chacra pretendendo passar um pito no embaixador Celso Amorim porque não visitou a Ucrânia até a quase totalidade do pseudojornalismo apavorada com o isolamento internacional a que seríamos condenados.
Chacra teve que pedir desculpas e responsabilizar o delay. O resto da turma não foi capaz até agora de entender por que Biden, em lugar de condenar o Brasil à insignificância que nossos pretensos jornalistas auguravam, resolveu decuplicar a proposta de contribuição estadunidense ao Fundo Amazônia, saltando dos U$50 milhões, prometidos por John Kerry, para U$ 500 milhões.
Ricardo Stuckert
Lula não precisa recorrer a exemplos históricos
Lula visitou Biden, com menos de 40 dias de mandato, para agradecer a ação do presidente estadunidense no imediato reconhecimento do resultado eleitoral e na articulação internacional que mostrou um claro isolamento do movimento golpista. Mas os interesses políticos comuns dos dois mandatários, não se traduziram em termos econômicos.
Foi preciso que a importância com que a visita brasileira acordasse o establishment estadunidense. Os acordos comerciais, de intercâmbio tecnológico e investimentos em infraestrutura estimados em 50 bilhões de dólares e, sobretudo, a possibilidade de que as trocas com nosso já maior parceiro comercial abandonassem o dólar como meio corrente já provocaram uma reação inicial que, ao contrário do que previam/desejavam nossos jornalistas amestrados é de aproximação e não de retaliação.
Até Trump contribuiu para isso ao declarar que os EUA “estão perdendo o Brasil para a China”. Certamente seu interesse em atacar a Biden, a esta altura provável candidato à reeleição em 2024, ajuda a explicar essa manifestação. Mas o New York Times também se moveu do desapontamento inicial pela ausência de um alinhamento automático do Brasil para o alerta sobre a necessidade de colaboração entre EUA, China e Brasil.
Nossa diplomacia sabe que uma potência intermediária como o Brasil só pode ampliar seu espaço internacional com cuidadosos mas ousados movimentos pendulares faces às grandes potências econômicas e militares.
Foi assim com Getúlio jogando com os interesses de Estados Unidos e Alemanha na Segunda Guerra para trazer capital e assistência técnica para a instalação de Volta Redonda e quase conseguir implantar a Fábrica Nacional de Motores de avião. É verdade que as Forças Armadas também eram, diferente de hoje, divididas em suas simpatias.
Lula não precisa recorrer a exemplos históricos. Basta sua afirmação, límpida e precisa, de que quando conversa com os EUA não pensa no que a China acha e quando conversa com a China não pensa no que os EUA acham.
Para quem não ficou claro, o que incluiu a maior parte de nossa mídia, ele esclarece: O nome disso é soberania nacional.
E o nome do que continua em andamento no solo pátrio ainda é tentativa de golpe.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.