A viagem de Lula à China, com escala de retorno nos Emirados Árabes Unidos, tem provocado fortes reações, dentro e fora do país, como seria de se esperar.
A mídia corporativa brasileira insistiu de forma especial no desconforto que a grande imprensa estadunidense, com destaque para Washington Post e New York Times, demonstrava com o que era indicado como um descolamento de Lula e do Brasil em relação “ao Ocidente”, a forma como o establishment do grande irmão do norte gosta de se referir à articulação das grandes nações capitalistas.
O crescimento econômico, até agora imparável, da China e os diferentes impactos, militares, políticos e econômicos da guerra na Ucrânia têm provocado fissuras e indicado um rearranjo da ordem internacional que, visivelmente, provoca um certo desconcerto da visão hegemônica do “Ocidente”, que se expressa pela ação militar, econômica, cultural e diplomática da ainda maior potência econômica e militar do planeta, repercutida e traduzida pela grande imprensa do país.
O artigo do Washington Post, de 13/04, é um excelente exemplo da mistura de arrogância, desapontamento e desconcerto com que o establishment estadunidense vem acompanhando a forma como o Brasil de Lula se move na cena internacional.
Isso fica claro desde o título que afirma que “o ocidente esperava que Lula fosse um parceiro”, mas “ele tem os seus próprios planos”. Logo na linha-fina, o Washington Post demarca que “hospedar navios de guerra do Irã”, “equivocar-se sobre a invasão russa da Ucrânia” e “negociar com a China” são os gestos que ameaçam “alienar” o Brasil dos Estados Unidos e da Europa.
Interpretados literalmente, título e linha fina compõem um ato falho, que deixa escapar o entendimento de que parceiros não podem ter seus próprios planos. Ou seja, que “parceiros” são subordinados. Assim como os “parceiros” europeus que aceitaram atuar contra os seus próprios interesses deixando de comprar gás mais barato da Rússia; fechando os olhos à comprovada sabotagem do gasoduto Nord Stream 2 ou aumentando seu orçamento militar para apoiar a Ucrânia.
Essa postura deve ser compreendida lembrando que os EUA se formaram como nação sob o signo da doutrina Monroe e da teoria do “destino manifesto” e da doutrina Monroe.
Ricardo Stuckert
Ao deixar o país asiático, presidente brasileiro destaca cultura, conectividade e transição energética como potenciais para transações
A primeira, elaborada pelo presidente James Monroe à época das independências nacionais dos países ibero-americanos, condensava na fórmula “A América para os americanos” tanto o veto à interferência europeia quanto a afirmação da liderança estadunidense no continente. A segunda, formulada duas décadas depois por John Louis O’Sullivan, assegurava que a expansão dos 13 estados para toda a América do Norte – e para o continente- era a expressão da vontade divina e devia se materializar não apenas em conquista territorial, mas na imposição de cultura e religião.
O século XX assistiu ao inexorável crescimento do poder econômico, militar e cultural estadunidense, marcado pelo equilíbrio bipolar do planeta a partir do final da segunda guerra mundial e pela condição de única superpotência a partir da implosão do império soviético em 1989.
A onipotência do império, no singular, chegou a motivar um ensaio famoso que propagava o “fim da história”. Como esta sempre se vinga, a certeza de haver alcançado o destino manifesto em escala global não permitiu perceber o crescimento econômico, tecnológico e, por extensão, militar do gigante chinês.
A China é hoje o maior parceiro comercial de praticamente todos os países da América do Sul e da África, além de um bom número dos europeus. Considerar “negociar com a China” uma deslealdade aos Estados Unidos pode ser ingenuidade ou má-fé. Ou uma mistura das duas.
Como disse o chanceler brasileiro a respeito das críticas de um funcionário estadunidense, vale lembrar que o Brasil mantém relações diplomáticas com a Rússia há mais de um século. Ponto.
Aliás, o interesse dos EUA em prolongar uma guerra que a Ucrânia não tem condições de vencer e cujo custo a população da Europa não está satisfeita em pagar corresponde à visão do próprio Pentágono, como mostra um conjunto de documentos confidenciais que acabam de ser vazados.
Para a imprensa corporativa brasileira, Lula tem falado demais. Não surpreende. Afinal, para a imprensa corporativa brasileira, Lula não devia ter vencido a eleição.
(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.