“É inadmissível que em plena 2ª década do século 21 alguns líderes insistam em se comportar como (…) quando não existia diplomacia e a única lei em vigor era a lei do mais forte. É preciso interromper a guerra entre Estados Unidos, Ucrânia e Rússia”.
Esse foi o início do discurso de Luís Inácio Lula da Silva, em 3 de março, na Câmara de Deputados do México.
Independentemente da opinião que se tenha sobre Lula, é inegável que ele goza de prestígio internacional como estadista. Ser recebido com honras de chefe de estado por Macron ou agora por López Obrador são apenas os mais recentes episódios desse reconhecimento.
Lula deixou claro que nenhum país tem o direito de invadir outro. Mas também que nenhum país tem o direito de cercar o outro com ogivas nucleares. E explicitou o maior segredo de polichinelo do século XXI: não há uma guerra entre Rússia e Ucrânia, mas uma guerra entre Estados Unidos e Rússia, que se desenrola na Ucrânia.
Talvez isso seja claro para alguns poucos, mas não é para a maioria da população (des)informada pela mídia corporativa, nem para setores progressistas bem-intencionados, que exigem uma condenação da Rússia “sem adversativas”, para usar uma expressão que retumbou na GloboNews.
O que suporia que não importa o que aconteceu antes, não importa que os Estados Unidos tenham provocado guerras quentes e frias, que tenham desestabilizado países e apoiado golpes, que tenham demolido o sistema internacional ao sobrepor a Otan aos mecanismos coletivos da ONU e tornar o Conselho de Segurança um penduricalho inútil.
Não importa que ainda hoje, a Arábia Saudita massacre populações civis no Iêmen, ou que Israel tenha anexado às colinas de Golã e pratique apartheid contra os palestinos, com permanente suporte estadunidense.
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O apelo emocional da mídia pretende transformar em heroísmo a ação irresponsável de Zelensky ao convocar civis destreinados para a guerra
O apelo emocional da grande mídia pretende transformar em heroísmo a ação irresponsável de Zelensky ao convocar civis destreinados a enfrentar um poderoso exército profissional. Obviamente não o fez sem o apoio norte-americano, que não se importa com o número de mortes na medida em que isto possa alimentar a guerra no campo da informação.
Não sou nem acho que sou um especialista em geopolítica. Apenas cumpro minha obrigação de exercer o direito à dúvida e reconhecer a necessidade de ouvir quem entende. Por isso me atrevo a sugerir, além do premonitório texto de Kissinger, em 2014, que vale a pena ouvir o general português Raul Cunha, que foi conselheiro militar do Secretário Geral da ONU durante o conflito de Kosovo.
E antes que se pense que ele seja um esquerdista, também recomendo o debate entre o cientista político da Universidade de Chicago, professor John Mearsheimer e Ray McGovern, ex-encarregado da seção russa na CIA.
O consenso, fora da mídia corporativa e da histeria das redes sociais, é que os Estados Unidos forçaram a Rússia, ultrapassando vários limites desde 2008. E os rumores de que desde 2014 os mesmo Estados Unidos mantinham laboratórios de armas químicas na Ucrânia, saltaram das teorias conspirativas para a confirmação frente a uma Comissão do Senado Norte-americano por ninguém menos que Victoria Nuland, principal interlocutora norte-americana durante o golpe de estado ucraniano de 2014.
E quem paga o pato pela mão do gato são os mortos e os milhares de refugiados, loiros ou morenos, e todos os que arcarão com mais fome e aumento do custo de vida para saciar a sede imparável de lucros do mercado de petróleo e dos fabricantes de armas. Isso se a guerra permanecer “fria”.
Como sempre soube a FIESP, os patos somos todos nós.
(*) Carlos Ferreira Martins ´é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos