Há menos de um ano, quando pouco se sabia da ameaça que surgia, mas já ficava claro seu caráter pandêmico, o tema do day after mobilizou debates.
Como quase sempre desde que a futurologia se colocou de moda, as posições se dividiram. De um lado, estavam os que viam na própria natureza horizontal e coletiva da ameaça a razão para uma onda de esclarecimento, que mostraria a todos a necessidade de solidariedade intra e extranacional, de fortalecimento dos sistemas públicos de saúde, de valorização da ciência e do conhecimento.
Hoje, esta posição já quase não se manifesta, embora os meios de comunicação de massa evitem cuidadosamente expor o caráter cruel do aprofundamento das desigualdades sociais, da falta de solidariedade internacional, da ânsia desmedida por lucros das multinacionais farmacêuticas, mesmo quando sabemos que a maior parte do financiamento das pesquisas para a produção das vacinas tenha sido estatal.
Como a desigualdade é, para usar um jargão que tem sido aplicado a outras assimetrias, estrutural e sistêmica, ela tem sido diagnosticada de múltiplas – e cumulativas – maneiras.
Hoje sabemos, pelo histórico das primeiras contaminações, que esse é um vírus que chega de avião e se alastra pelo transporte coletivo, deixando explícito seu caráter de classe.
Também sabemos que os vários mecanismos de desigualdade e exclusão espaciais cobram seu preço na enorme diferença das proporções de contaminação e letalidade entre moradores das áreas nobres e daquelas ditas periféricas.
Pedro Guerreiro / Ag. Pará
Nunca correu o risco da falta de oxigênio acontecer nos hospitais da elite, dos notórios Einstein e Sírio-libanês
O vírus pode ser democrático, mas as condições de acesso à prevenção e ao tratamento não são. Se em Manaus – ou agora até na rica Araraquara – pode faltar oxigênio, isso nunca correu o risco de acontecer nos hospitais da elite, dos notórios Einstein e Sírio-libanês ao até recentemente pouco conhecido hospital temático com direito a enfermeiras usando véu à la Dubai.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) teve pouco sucesso no Covax Facility, seu programa de busca de uma vacina universal, livre de pagamento de royalties e com financiamento internacional para sua distribuição a mais de 90 países que não tem nenhuma condição de buscar vacinas para suas populações no congestionado mercado internacional.
Calcula-se que a universalização da imunização custaria 27 bilhões de dólares. É um montão de dinheiro, mas mal chega a um quinto do que os bancos centrais do planeta inteiro gastaram para evitar a falência do sistema bancário na crise de 2009.
Não parece haver qualquer razão para prever um mundo melhor e mais solidário numa eventual pós-pandemia. Mas só o roteirista mais afeito ao exagero distópico conseguiria imaginar personagens como o genocida brasileiro, seus generais amestrados e amestradores e o bando de alucinados aglomeradores que perdem a vida, mas não a oportunidade de encher a cara com os amigos.
(*) Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do IAU-USP São Carlos