A ideia de um terceiro turno, como um momento ou tema específico para tensionar o resultado de uma eleição, já se mostrou insuficiente para definir as dificuldades e desafios colocados para o governo Lula. A trégua de boa vontade consolidada nos 100 primeiros dias ou pelo menos a carência de uma oposição mais feroz, consagradas internacionalmente, também já não se verificou.
Mesmo antes dos meros dois meses de mandato, Lula já teve que operar a difícil negociação da desmontagem parcial da bomba orçamentária deixada por Jair Bolsonaro e as críticas pela esquerda dos compromissos da composição ministerial, que levaram para o colo do governo ministros e ministras afundados em relações com milícias e com desmatadores.
Com a reconhecida habilidade do presidente em navegar pelas correntes conturbadas da negociação parlamentar, apesar de causar pruridos nos militantes mais idealistas, não era, por outro lado, garantia de sucesso no enfrentamento dos movimentos nem tão subterrâneos do golpismo civil e militar.
A tentativa de invasão da Polícia Federal de Brasília no dia da diplomação presidencial e o incêndio de vários veículos, oficiais e particulares, sem que houvesse uma única prisão ou indiciamento, já era um indicador do que viria das placas tectônicas do terrorismo golpista.
A longevidade da conivência – quando não estímulo – militar aos mal chamados acampamentos antidemocráticos se expressou com agudeza na tentativa de explosão de um caminhão tanque no aeroporto de Brasília, como presente de Natal aos planos golpistas. Já em janeiro, um dos autores confessou ter recebido a bomba no acampamento golpista em frente ao Quartel General do Exército.
A tranquilidade em que transcorreu a bela festa da posse, favorecida inclusive pela fuga do capitão ex-presidente, parece ter sido uma tentativa bem-sucedida de desmobilizar a atenção dos responsáveis pela prevenção e segurança institucionais, como demonstrou a invasão articulada dos espaços representativos dos três poderes republicanos no episódio de 8 de janeiro.
Toda a tensão dos já sabidos desdobramentos, da negação da GLO à intervenção federal na segurança do DF, do afastamento de Ibaneis Rocha à prisão de Anderson Torres, ficaria pequena diante da decisão, 13 dias depois, de determinar ao ministro da Defesa a exoneração do general Arruda, recém-empossado comandante do Exército, e sua substituição pelo general Tomás Paiva.
Ricardo Stuckert
Lula e José Múcio, seu ministro da Defesa
Certamente foi o momento mais tenso – até agora, claro – da questão militar no processo de reconstrução do país. Já comentamos em outro momento que a divulgação de vídeo gravado de fala interna do general Paiva a meros três dias da intervenção determinada por Lula, desde Roraima, onde chamava a atenção internacional para a situação dos Yanomami, obviamente indicava uma costura interna anterior.
Um áudio vazado nos últimos dias, da fala de Paiva aos seus subordinados no mesmo dia 18 de janeiro, agrega informações e oferece possibilidades de leitura várias.
O áudio está disponível no podcast Roteirices, com o título “Atual comandante apontou interferência política do governo Bolsonaro no Exército”. Em 50 minutos de fala, Paiva admite que o estamento militar lamentou a vitória de Lula, o que não é novidade, mas também não deveria ser naturalizado.
A grande mídia destaca que ele admite interferência de Bolsonaro na manutenção dos acampamentos frente aos quartéis e enfatiza sua posição de que não foi identificada nenhuma fraude nas eleições.
Por outro lado, vários analistas chamam a atenção para incoerência constitucional de uma palestra de um general dedicada à análise política das eleições, dos riscos de isolamento internacional decorrentes de um eventual golpe militar e de suas consequências para a economia.
Outros ainda, sem poder garantir relações de causalidade que só a explicitação da fonte permitiria atentam para a extraordinária coincidência temporal do vazamento com a decisão de Alexandre de Morais de que os militares envolvidos no 8 de janeiro serão julgados pelo STF.
Como sempre nos casos de vazamentos, é essencial preservar as fontes, mas permanece a pergunta sobre quem vazou e por quê. Podemos apenas supor que, no meio de braços de ferro entre Lula e o Banco Central, entre os que defendem a volta dos impostos sobre combustíveis e os que pedem mais tempo, alguém decidiu nos lembrar que a “questão militar” não está superada.
(*) Carlos Ferreira Marrisn é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.