Já dissemos aqui que a PEC 32, vendida sob o nome fantasia de Reforma Administrativa, aprovada na Comissão Especial e pronta para ir a votação nos plenários, representa o desmonte final do Estado concebido pelo jogo de forças plasmado na Constituição de 1988.
Para trazer um pouco de humor a um assunto sério, poderia começar dizendo que todo arquiteto tem a obrigação de saber a diferença entre reforma e demolição. E é uma exatamente uma demolição o que, com os argumentos marqueteiros de eficiência, racionalidade e fim dos privilégios, está sendo vendido à população.
A questão é que a PEC, que altera 27 trechos da constituição, trará como resultados exatamente o contrário.
Comecemos pelo “fim dos privilégios”. Nesta semana, o vice-presidente, com sua notória sensibilidade social e fineza intelectual, afirmou que “o Estado não pode ser obrigado a carregar o servidor por toda a sua vida”.
Alguém com bom humor lembrou nas redes que o Estado, ou seja, todos nós, já carrega os militares, que podem acumular aposentadorias com salários de até 260 mil reais (mensais!) como o general que ganhou a presidência da Petrobras para não colocar obstáculos à sua venda.
E não só os carregamos até o fim da sua vida, mas continuamos mantendo suas filhas e netas que disfarcem sua vida conjugal permanecendo legalmente solteiras. Com isso a PEC não vai acabar. Assim como a promoção automática no momento da reserva não vai acabar.
A possibilidade de acumular aposentadoria de militar com salário de função civil ultrapassando o teto constitucional não só não vai acabar como deixará de ser ilegal.
A mal chamada reforma diz que limitará a possibilidade de férias excessivas. Seria bom, porque até agora ninguém conseguiu explicar por que os juízes têm direito a dois meses de férias por ano e ainda podem vende-las.
Lula MarquesReprodução
PEC 32 é o nome fantasia para o desmonte do Estado e do funcionalismo público
Mas isso também não vai acabar, porque a magistratura, assim como os militares, está fora da PEC.
Finge-se também querer acabar com os adicionais vários e cumulativos, os penduricalhos que engordam “por fora” os salários dos servidores. Parece bom, mas só vale o funcionário na ponta do serviço, que atende ao público em troca de 2 ou 3 mil por mês.
Porque os servidores do legislativo, por exemplo, poderão ficar fora da “reforma”? Uma das malandragens da PEC é que os congressistas decidirão depois, por lei ordinária, sem precisar do quórum qualificado das mudanças constitucionais, quais serão as “carreiras de estado”, que terão direito a ficar fora do regime geral.
Deputados e senadores poderão depois negociar com as corporações mais poderosas quem ficará fora do sacrifício geral. E nós sabemos que o interesse geral da população é o critério que guia nossos congressistas, não é mesmo?
Mas ainda tem a cereja do bolo. O presidente da república poderá, por decreto, isto é, sem passar nem mesmo pelas negociações e negociatas com o Congresso, mudar a estrutura do Estado, criando e extinguindo órgãos públicos.
Traduzindo, caro leitor. Se a tal “reforma” for aprovada na gestão Bolsonaro, ele poderá finalmente moldar o Estado brasileiro à sua imagem, semelhança e vontade.
Talvez seja por isso, além do contumaz descompromisso com o dito e desdito, que ele pode afirmar à Veja que desistiu do golpe. Aprovada a PEC 32 ele poderá, legalmente, dar o golpe. With a not little help from his friends.
*Carlos Ferreira Martins ´é professor titular do IAU USP São Carlos