Causou comoção o editorial da Folha de São Paulo afirmando, a propósito da volta de Jair Bolsonaro ao Brasil, que “opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira – desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática e a polarização irracional”.
As reações foram desde o meme de que a Folha estaria lançando o “Jair do Vigor” até questionamentos mais diretos sobre o que poderia significar um bolsonarismo sem violência, sem atitude antidemocrática e sem polarização irracional.
A publicação de uma errata afirmando que se tratava de uma versão anterior à aprovação final, publicada por engano, e que a correta seria “o bolsonarismo até poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição saudável ao PT. Esse não é, infelizmente, o desfecho mais provável”, não agradou aos críticos.
Se a emenda não é pior que o soneto, nem por isso é verossímil. Afinal, dizer que o bolsonarismo sem violência e sem autoritarismo não é o desfecho mais provável é dizer que, ao menos em teoria, essa hipótese é plausível. Em outras palavras, para a Folha, o bolsonarismo não é intrinsecamente autoritário, nem violento, nem polarizador.
Em tempos anteriores a Folha havia se somado a outros órgãos e setores para expressar o desejo de uma candidatura responsável, capaz de levar adiante o processo de desmonte das políticas públicas e venda do patrimônio nacional a preços aviltados e condições lesa-público sem os “exageros” do bolsonarismo.
Ou seja, um bolsonarismo que respeitasse a liturgia da Presidência, sem o elogio permanente à violência, sem apoio concreto à proliferação indiscriminada de armas, sem apoio às milícias, sem exibição arrogante do desprezo às vítimas da pandemia, sem o desrespeito ostensivo pelas leis, sem a incitação à violência contra adversários políticos.
Esse curioso personagem, definido pela retirada das características que marcaram sua carreira militar e suas três décadas de atuação parlamentar foi jocosamente definido como um Bolsonaro que “soubesse usar talheres”, ou como um político capaz de levar adiante a política de Paulo Guedes sem a truculência do ex-presidente.
No final das contas essa era a esperança de uma “terceira via” capaz de derrotar Lula. Um político de boas maneiras, que evitasse situações prejudiciais aos negócios, como a condição de pária internacional, mas seguisse com as privatizações desenfreadas, com as reticências em relação aos direitos das minorias e a retirada daqueles das maiorias.
Isac Nóbrega/PR
Ao sugerir um ‘bolsonarismo racional’, Folha só deu continuidade a uma história pouco honrosa de editoriais
Como esse personagem dos sonhos não apareceu, deu-se por suposto que seus potenciais eleitores decidiram apoiar Lula no segundo turno e apontar para um governo de frente ampla o suficiente para demover o petista de suas “promessas de campanha”.
Por essa razão, não houve a trégua dos 100 dias e não haverá trégua até o final do mandato. Lula será atacado quando reivindica a baixa da taxa de juros mesmo que economistas de renome internacional indiquem a política do Banco Central como incompreensível e nefasta e, segundo o DataFolha, nada menos do que 80% da população concorde com ele.
A Folha nada mais fez do que dar continuidade a uma história pouco honrosa de posicionamentos editoriais. Ficou na saudade a defesa da Campanha das Diretas e, nos últimos anos, tivemos que engolir a famosa “Ditabranda” de 2009 e o ignominioso título “Jair Rousseff”, de 2020.
Ainda assim, confessar a esperança de um bolsonarismo saneado depois de 8 de janeiro, após o memorando do golpe na casa de Anderson Torres e do escândalo das joias de Ali Babá só mostra que a Folha se juntou à CNN, cuja âncora, semanas atrás, reagiu quando Pedro Cardoso se referiu ao ex-presidente como torturador, afirmando não haver provas de que o capitão “tenha pessoalmente torturado alguém.”
Desse mato não sairão coelhos diferentes. Cabe ao governo estabelecer uma política eficiente de comunicação com o conjunto da população, o que até agora não se pode perceber. Cabe ao presidente Lula exercitar sua reconhecida capacidade de falar a linguagem da população mais pobre e falar diretamente com sua base apoio.
Não é razoável esperar apoio – e infelizmente nem isenção – daqueles que não queriam este governo vitorioso nem um presidente que entendesse suas “promessas” como “compromissos”. Ou o governo melhora sua comunicação e mobiliza sua base de apoio ou ficará sujeito ao jogo no campo onde seu apoio é minoritário.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.