Depois de algumas semanas de folga ao eventual leitor, agradeço o convite para retornar ao Opera Mundi, de um lado em dúvida sobre o risco de interromper o alívio do leitor e de outro tentando achar a embocadura no novo formato, talvez melhor organizado, entre as colunas nacionais e internacionais.
As dificuldades da embocadura são de duas ordens.
A primeira, pessoal, é que não sendo jornalista ou cientista social, só consigo escrever (“opinar”) sobre o que me afeta ou sensibiliza de modo direto. O título de “especialista”, tão recorrente quanto abusivo na grande mídia, só me cabe nas raras vezes em que escrevo sobre arquitetura ou sobre ensino superior.
A segunda é que cada vez me considero menos capaz de discernir o que é um acontecimento, um problema ou, mais jornalisticamente, um assunto nacional e um internacional.
Desde que recebi o gentil convite da nova editoria de Opinião deste Opera Mundi, um questão não deixa de zumbir na minha orelha: afinal, qual a relação entre um jornalista brasileiro de origem judaica, uma acadêmica negra estadunidense; um advogado neto de libaneses e funcionário da ONU, uma escritora premiada pela Feira de Frankfurt que não pode receber seu prêmio e o staff do presidente Biden?
Apenas os muito desatentos não lembrarão da escandalosa perseguição da CONIB-Confederação Israelita do Brasil ao jornalista e fundador deste veículo, Breno Altman.
Escandalosa, mas infelizmente amparada por setores da magistocracia brasileira que insistem em aplicar o que a ABI – Associação Brasileira de Imprensa –, inúmeras entidades e juristas e o próprio Conselho Nacional de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, não tem dúvidas em caracterizar como tentativa inaceitável e inconstitucional de censura.
Menos conhecida do público em geral, talvez, seja a saga de Claudine Gay, economista e cientista social que aos 54 anos se tornou a primeira reitora negra da Universidade de Harvard, usualmente considerada pelos rankings internacionais como a mais importante do planeta, ou no mínimo entre elas.
Com brilhante carreira acadêmica, graduada em economia por Stanford, outra das universidades top five, e premiada por seu doutorado em Harvard, Gay foi ali elevada a diretora da Faculdade de Artes e Ciências Sociais. Depois de mais de 25 anos de atuação em cargos de enorme visibilidade – e escrutínio – no ambiente acadêmico, Claudine Gay renunciou no último dia 2 de janeiro, formalmente acusada de “prática difusa de plágio”.
De fato, Gay foi apenas a ponta mais visível de um ataque às universidades por parte dos republicanos e do lobby sionista estadunidense. A reitora da Universidade de Pensilvania, Elizabeth Maggil, que renunciou três semanas antes de Gay, e o reitor do Massachussets Institute of Technology ( MIT – outro dos top five) também foram severamente pressionados desde o 7 de outubro por suposta “leniência com o antissemitismo” de estudantes e docentes que se manifestaram de diferentes maneiras contra a política colonialista do Estado de Israel e o genocídio em curso na faixa de Gaza.
Mesmo a vergonhosamente pró-Israel imprensa brasileira não pode esconder a renúncia de Craig Gerard Mockiber, diplomata estadunidense de origem libanesa, que dirigia até outubro o escritório em Nova York do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU.
Poucos dias antes de renunciar, Mockiber escreveu que “se você defende os direitos humanos dos palestinos você será pintado como antissemita” e que “depois de 40 anos na defesa dos direitos humanos estou acostumado com essa dança”.
A Feira do Livro de Frankfurt, por vezes considerada a mais importante do planeta, suspendeu indefinidamente a entrega do prêmio outorgado à escritora palestina Adania Shibli, pela publicação do livro Detalhe Menor, que narra em dois tempos o sequestro e assassinato de uma garota beduína por soldados israelenses e a saga de uma mulher que, décadas depois, tenta resgatar essa história.
Se os nexos até aqui são de cristalina evidência, o que tem o staff de Biden a ver com isso?
Semanas atrás recebi uma foto de um grupo de pessoas em frente à clássica cerca da Casa Branca segurando uma faixa onde se lia “Presidente Biden, seu staff apoia o cessar fogo imediato”.
Como infelizmente a produção e divulgação de fake news há muito deixou de ser privilégio da direita, resolvi perguntar a uma pessoa próxima que vive nos EUA e já trabalhou para os democratas, e ela me confirmou que os funcionários do gabinete de Biden repetem sistematicamente a mesma manifestação.
Não sei se o fazem por convicção humanista ou pela percepção, cada vez mais disseminada, de que, ao personificar a falência moral do Ocidente, Biden está pavimentando a avenida que levará Trump à presidência dos Estados Unidos.
(*) Carlos A. Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos