Um turista brasileiro, vestindo a camisa amarela da seleção da CBF, desce de uma van cheia de colegas e, com a companheira, adentra a Casa Sebastiana, uma das três que pertenceram ao poeta chileno Pablo Neruda, foram transformadas em museu e são atrações turísticas do país – Neruda foi o segundo poeta chileno a receber o Prêmio Nobel, em 1971; antes dele, Gabriela Mistral havia sido reconhecida pela Academia Sueca em 1945.
O figurino do visitante em questão, neste momento em que vivemos, permite supor que pode se tratar de um dos defensores do impeachment de Dilma. Talvez um antipetista militante. Quiçá um furibundo anticomunista. Pode ser, claro, apenas um distraído e desavisado turista. Mas, se suposição estiver correta, o brasileiro antidilmista não se sentirá minimamente incomodado, apesar do passado militante comunista do poeta chileno.
A visita a uma das casas-museu custa seis mil pesos chilenos, ou uns trinta reais. Talvez seja pouco para um turista, mas é muito para a maioria dos chilenos. As três casas da Fundação Neruda – La Chascona, em Santiago, La Sebastiana, em Valparaíso, e a Mansão de Isla Negra, no balneário de El Quisco, todos na região central – são os museus mais caros do Chile, e um visitante mais atento perceberá que são raros os chilenos que as frequentam. Os brasileiros estão entre os turistas estrangeiros que mais visitam as três antigas casas-museu, mantidas pela Fundação Neruda, que administra todo o acervo material e bibliográfico do autor desde 1986.
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Além de ser um dos grandes nomes da literatura mundial, Neruda foi militante e senador pelo Partido Comunista chileno
Neruda for export
O Neruda apresentado nessas casas, no entanto, é bastante diferente da figura histórica real. As casas mostram uma figura pasteurizada, por meio de anedotas e alguns citações descontextualizadas. Neruda vira não só um produto, mas um produto for export, uma experiência que exagera alguns traços do poeta e omite muitos outros, especialmente os relacionados à política.
Aquele que chega sem saber que Neruda, além de poeta, foi um ativo militante do Partido Comunista, pode sair de uma das casas-museu realmente emocionado, com essa versão despolitizada da sua biografia. O relato construído pelas casas é enfocado na vida de Neftalí Reyes Basoalto, seu nome de batismo, sua infância triste de menino órfão de mãe, sua juventude marcada por mulheres e boemia, a descoberta da poesia, a fascinação pelo mar e pela vista do porto de Valparaíso.
Mas quem conhece o Neruda ativista pelos direitos humanos e trabalhistas não poderá evitar a frustração. Há pouquíssimas referências ao engajamento político do escritor, à sua militância no Partido Comunista, seu mandato como senador ou até mesmo sua rivalidade com outros poetas comunistas chilenos, como Vicente Huidobro e Pablo de Rokha.
Mesmo sua vida de diplomata é muito mal abordada, boa parte dela contada através da frivolidade dos presentes que colecionou na época – aquelas “tranqueiras”, como os ex-presidente Lula classificou os presentes que recebeu durante o mandato.
Dentro desse acervo estão umas garrafas com desenhos feitos em areia. “Artesanato típico do litoral do Brasil, presente do seu amigo, o escritor Jorge Amado”, conta uma guia. Ela não conta, porém, que essa amizade se consolidou não pelas letras, e, sim, porque ambos eram proeminentes militantes do Partido Comunista, em seus respectivos países.
No mesmo ano de 1945 em que Amado disputou as eleições pelo PCB e foi eleito deputado, Neruda venceu as eleições para senador, filiando-se ao PCCh meses depois.
Um dos problemas de se contar a vida de uma pessoa através dos seus pertences é que isso torna difícil relatar certos momentos importantes em que se perdeu mais que ganhou coisas. Ainda assim, há um certo cuidado das casas-museu em relatar duas passagens da vida de Neruda: sua importante atuação como diplomata para resgatar refugiados da Guerra Civil Espanhola – levando-os da França ao Chile, no navio Winnipeg – e sua fuga pela Patagônia Chilena, em 1969, após o presidente Gabriel González Videla decretar a chamada Lei Maldita, que colocou o Partido Comunista do senador Neruda na clandestinidade.
Allende desaparecido
Nas casas-museu, há muito pouco sobre Salvador Allende. É mais fácil encontrá-lo nas lojinhas de souvenires, onde você pode encontrar um pôster dos dois abraçados, Neruda vestindo poncho, no dia em que o presidente socialista o recebeu no Estádio Nacional, após a entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 1971.
Nenhuma referência ao fato de que o evento marcava o retorno do poeta ao Chile depois da fuga no final dos Anos 60 e que aquele retorno não foi por causa do prêmio, mas para apoiar Allende contra um golpe de Estado que já se anunciava.
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O pôster custa 12 mil pesos (cerca de 60 reais) e é um dos itens mais baratos, ou menos caros, da lojinha da casa-museu de Isla Negra. Ainda assim, se considerarmos a venda de produtos e organização de eventos, como encontros de poesia – quase sempre enfocados nos seus versos de amor ou nas odes a natureza, e não em suas cantigas aos trabalhadores mineiros do Chile, versos sobre a América Latina saqueada e empobrecida, sobre a morte que ronda a vida dos camponeses, sobre as injustiças do mundo e as mazelas do capitalismo –, poderíamos considerar o conjunto das casas-museu da Fundação Neruda um dos bem sucedidos negócios turísticos do mundo. E isso que sem incluir o que se fatura em forma de direitos autorais das obras do autor.
Morte suspeita
Aqui nasce outra controvérsia, já que existem muitas dúvidas sobre a forma como se adquiriu esses direitos, que vieram junto com os direitos de se utilizar o acervo, as próprias casas e tudo o mais o relacionado à vida de Neruda. Parte dessa controvérsia vem do fato de que as investigações sobre a causa da morte de Pablo Neruda encontraram na Fundação um inesperado obstáculo.
O poeta faleceu no dia 23 de setembro de 1973, doze dias depois do golpe de Estado contra Allende. A causa da morte, determinada pelos médicos ligados aos militares, foi uma suposta metástase de um câncer de próstata, o qual ele controlava desde o ano anterior. O juiz Mario Carroza, da Corte de Apelações de Santiago, iniciou investigação em 2011, a partir do testemunho Manuel Araya, ex-guarda-costas pessoal de Neruda, quem assegurou que ele foi assassinado pela ditadura.
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O poeta Pablo Neruda ao lado do socialista Salvador Allende, que seria deposto no golpe militar de Pinochet (1973)
Desde então, a Fundação Neruda foi uma barreira. Por exemplo, a entidade tentou por meses, através de liminares, impedir a exumação dos restos mortais, que se encontram enterrados na casa-museu de Isla Negra. Antes disso, e depois do testemunho de Araya, a entidade apresentou quantidade importante de testemunhas, pessoas que supostamente viveram nas proximidades de Isla Negra nos dias anteriores ao golpe, para comprovar que Neruda mostrava sinais de saúde debilitada. Advogados ligados ao PCCh (Partido Comunista chileno) e à família Reyes acusam a Fundação de tentar entorpecer as investigações com depoimentos que se contradizem.
Aqui vale destacar aqui que a família Reyes não tem nenhuma ligação com a Fundação Neruda. Pelo contrário. O advogado Rodolfo Reyes, sobrinho do poeta, já deu entrevistas dizendo que se o caso determinar a morte de seu tio por assassinato, o próximo passo poderia ser o questionamento à propriedade do acervo e da obra por parte da Fundação – adquiridos, segundo a mesma, por doação da viúva, Matilde Urrutia.
Os resultados mais recentes das exumações realizadas, por especialistas chilenos e estrangeiros, mostraram avanço nessa direção. Determinaram que Pablo Neruda não tinha um câncer em estado de metástase, e portanto a causa noticiada pela imprensa à época não configura uma versão verdadeira. Também descobriram a presença de uma bactéria que poderia significar um possível envenenamento. Esses resultados ainda não são conclusivos, embora tenham levado o governo chileno a produzir documento onde reconhece o assassinato do poeta como uma possibilidade.
Eduardo Contreras, advogado do PCCh, assegura que Neruda tinha um testamento, no qual entregava boa parte do seu acervo e dos direitos de suas obras aos sindicatos de trabalhadores e camponeses chilenos. Porém, se esse documento existiu realmente, é pouco provável que tenha sobrevivido aos saques e incêndios que suas casas sofreram durante a ditadura.
Neruda foi e é um dos escritores mais lidos da literatura em língua espanhola, e certamente muitos dos seus admiradores devem lamentar vê-lo reduzido a um mero empreendimento turístico de sucesso. Mas terão que se contentar com seu rol nessa história: o de consumidores.