Pode-se dizer que Steven Andrew Soderbergh tem o cinema no sangue. Embora seja natural de Atlanta, o sobrenome remete a “Söderberg”, de sua família sueca que migrou para os Estados Unidos. Nascido em 1963, decidiu arriscar-se em Hollywood antes mesmo de ir para a universidade – e não se arrependeu. Em 1989, aos 26 anos, estourou no mundo todo com Sexo, Mentiras e Videotape, que levou nada mais nada menos que a Palma de Ouro em Cannes. Soderbergh foi o mais novo diretor, na história do festival, a abocanhar o prêmio. Contudo, na década de 90, sofreu da síndrome de Orson Welles e, após cinco longas, só conseguiu conquistar a unanimidade novamente com Erin Brockovich (2000) e o aclamado Traffic. Desde então, alternou realizações comerciais, como a série Onze Homens e um Segredo (2001, 2004 e 2007), com experimentos como Bubble (2006), que saiu, quase simultaneamente, no cinema, em DVD e na TV a cabo.
Já Benicio Monserrate Rafael del Toro Sánchez nasceu em Porto Rico, em 1967. Após a morte de sua mãe, de hepatite, mudou, com seu pai e seu irmão mais velho, para o estado da Pensilvânia, nos EUA. Começou com pequenos papéis na TV, fazendo pontas em séries como Miami Vice, nos anos 80. Teve até uma participação num clipe de Madonna de 1987, La Isla Bonita. Mas só foi despontar em meados da década de 90, com Os Suspeitos (1995). Foi premiado como ator coadjuvante em Basquiat (1996) e viveu o dr. Gonzo na adaptação do clássico de Hunter S. Thompson, Medo e Delírio em Las Vegas. A consagração efetiva viria com Steven Soderbergh, em Traffic (2000), quando levou um Oscar e um Globo de Ouro pela performance de Javier Rodriguez – um policial mexicano, de fronteira, tentando se manter honesto em meio à corrupção do tráfico.
Che, o filme, era originalmente um projeto de Del Toro, atuando como produtor, desde a época de Traffic. Com a produtora associada Laura Bickford, o plano era adaptar a elogiada biografia de Jon Lee Anderson, de 1997. Na falta de alguém que escrevesse o roteiro, os direitos de adaptação terminaram expirando – foi quando Del Toro se voltou para Soderbergh. Sentindo-se desafiado, o diretor se envolveu na pesquisa e procurou concentrar o roteiro em duas fontes principais de informação: os escritos do próprio Che sobre a Revolução Cubana e seus diários da guerrilha na Bolívia.
As dificuldades de encontrar uma unidade persistiram – até que Soderbergh, numa atitude considerada de alto risco, resolveu dividir o filme em dois: O Argentino, que aborda justamente os eventos até a Revolução Cubana; e Guerrilha, sobre a tentativa frustrada de fazer a revolução na Bolívia. Soderbergh, inclusive, anda dizendo que poderá realizar uma terceira parte, sobre a guerrilha no Congo, se a bilheteria de Che for lucrativa.
O ponto de vista cubano
Até se valendo da noção dialética do marxismo, cada metade de Che tem um ritmo diferente, uma paleta de cores diferente, uma proporcionalidade (de tela) diferente e até uma abordagem narrativa (linearidade versus não-linearidade) diferente. Críticos maldosos poderiam sugerir que as diferenças refletem os embates internos do próprio Soderbergh, já que O Argentino é um produto feito para Hollywood, enquanto Guerrilha tem um aspecto de filme independente, com “câmera na mão”, poucos personagens e uma tensão que contamina o espectador.
Ainda por conta do embargo do governo norte-americano a Cuba, Che não pôde ser rodado lá – tendo sua primeira metade filmada, em 39 dias, no México e em Porto Rico; e a segunda, também em 39 dias, na Espanha. Del Toro oferece à meca do cinema um produto que mostra o ponto de vista cubano e critica o governo dos EUA.
A crítica especializada, desde a primeira exibição no Festival de Cannes de 2008, foi elogiosa em sua maior parte. Che, além de falar de uma revolução, tem sido considerado “revolucionário” em si (como formato cinematográfico). Detratores dizem que as quatro horas das duas partes somadas são, em vez de épicas, apenas longas. E quem não gosta do Che acusa Soderbergh de haver abreviado seu lado violento – partindo, originalmente, da realidade, mas desembocando num conto de fadas.
A dupla de realizadores responde que Che tem seu lado maçante, sim, porque a luta de Guevara foi árdua; e que jamais negou a violência dele – até a toleraria, militarmente, se a história os tivesse colocado no mesmo tempo e lugar. Del Toro foi ovacionado em Cuba, ainda que Fidel Castro só tenha elogiado a aparente seriedade da pesquisa inicial. Em Miami, houve protestos, claro. Este Che não vai apaziguar os ânimos depois de 50 anos. No Brasil, chega até março.
* Julio Daio Borges é editor-fundador do site Digestivo Cultural
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