O noticiário nacional e internacional deixou escapar, na última semana, uma chance rara de apresentar aos leitores um aspecto central da política internacional, que fica mais transparente à medida que a crise avança. Informação nunca valeu tanto quanto atualmente. No entanto, um dos fatos mais importantes dos últimos 15 dias não mereceu uma linha de destaque na imprensa: a aparente consolidação da Organização de Cooperação de Xangai (SCO na sigla em inglês), agrupando China, Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão.
O grupo está realizando encontros e conferências desde o início do mês em Ecaterinburgo, no coração da Sibéria, e na reunião de cúpula, nos dias 15 e 16, é possível que se tenha também acertado a inclusão definitiva de mais quatro países, três dos quais chaves para a evolução da política mundial: Irã, Índia, Paquistão e Mongólia.
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Esses países participam como observadores desde 2005, quando a SCO, fundada por iniciativa da China em 2001, começou a se estruturar concretamente como uma entidade independente do G7 e das instâncias que ele controla, inclusive o sistema de comércio e financeiro internacional. Já é a nona reunião da SCO, e pela primeira vez os observadores participaram integralmente da cúpula com os membros efetivos. Até o Brasil, indiretamente, envolveu-se nesse conclave asiático, na forma de um encontro paralelo dos BRICs, que além do Brasil, tem três representantes da CSO: China, Rússia e Índia.
O noticiário conseguiu não ver, mas é impossível negligenciar a força potencial dessa organização: aí estão bilhões de consumidores praticamente “virgens”. São países onde as vendas de carro, por exemplo, ainda envolvem menos de 20% das populações; onde existe um oceano de infra-estrutura à espera de investidores – de pontes e estradas a gasodutos, bases de lançamento de foguetes, usinas nucleares, universidades etc; e onde existe um mar de petróleo e de gás natural enterrado no subsolo.
É exatamente esse potencial que se discutiu em Ecaterimburgo – na forma de acordos e projetos entre os países, que permitam explorá-lo de maneira lucrativa. Ao mesmo tempo que se procura reduzir a níveis civilizados as guerras, terrorismos, espionagens e outras selvagerias que assolam a região há décadas e, obviamente, não ajudam no seu desenvolvimento.
Quando se olha os fatos dessa perspectiva, talvez a abordagem mais absurda do noticiário tenha sido a do The Huffington Post. Totalmente focado nas manifestações contra a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, o site ecoou rumores de que ele estaria “sumido” e estampou: “Ahmadinejad é visto na Rússia”. Claro, ele estava na reunião da SCO, cumprindo a agenda presidencial e dando um sinal claro de onde estava o seu interesse principal. O Irã, como o Paquistão e a Índia, são cruciais em quaisquer planos econômicos e políticos na Ásia Central e no vizinho Oriente Médio – e isso vale para aos países e empresas do G7 como para empresas e governos da SCO.
China e Rússia se entendem
Mas europeus e norte-americanos, ao perseguir seus interesses, apostaram que China e Rússia não se acertariam, segundo diversas fontes diplomáticas asiáticas (citadas especialmente pelas agências Al Jazeera, Xinhua, Ria Novosti e Asia Times, mais atentas ao mundo asiático). Os países do G7 sempre preferiram negociar com um país por vez para tirar vantagem de sua força econômica e militar. Mas China e Rússia agora estão transformando suas diferenças em complementaridade e montando planos econômicos comuns, de longo prazo, nos quais, num primeiro momento, a primeira entra vendendo manufaturados e a segunda, matérias-primas.
Em alguns casos, como aviões e outros equipamentos militares, a Rússia exporta para a China. Os contratos na SCO conferem importância central à transferência de tecnologia do vendedor ao comprador, o que usualmente amplia as desigualdades de comércio entre países pobres e o G7. Na CSO, o que se amplia são as possibilidades de comércio.
Divergências com certeza existem, mas as convergências de alguma forma estão se sobrepondo, e parecem grandes o bastante para atrair outros países. No caso do Irã – perigosamente isolado do mundo, inclusive pelo boicote econômico do G7 – a CSO pode abrir uma avenida larga, que só não vê quem não quer. Foi, aliás, providencial a postura cuidadosa de Barack Obama diante da rebelião anti-Ahmadinejad, evitando pressões para incitá-la sem que se tenha uma ideia mais clara da situação.
Parece certo que o novo governo dos Estados Unidos errou ao indicar o diplomata Dennis Ross (que já estaria demitido, segundo o diário israelense Haaretz) para negociar com o Irã. A política dele – de oferecer negócios em abstrato enquanto arrocha a pressão econômica e militar – foi criticada desde a nomeação, em fevereiro. Grandes nomes da diplomacia norte-americana, como Gary Sick, hoje na Universidade Columbia, disseram que esse tipo de abordagem certamente dificultaria a meta de reduzir tensões e atrair o Irã para a mesa de negociação.
É prudente esperar
Obama deve ter refletido sobre isso ao mudar o tom, dizendo que não queria interferir nos assuntos internos iranianos. A rebelião pode parecer simpática em muitos aspectos, e Ahmadinejad, um brucutu populista e sequioso de poder. Mas não dá para apostar um objetivo diplomático importante contra uma duvidosa alegação de que ele teria, de alguma forma, tirado algo como 7 milhões de votos da cartola, bem na frente de todo mundo.
É no mínimo mais prudente esperar. Até porque há indícios de que os próprios aiatolás procuraram depurar suas divergências: pela primeira vez, desde 1979, os debates foram televisionados e a campanha foi impiedosa, de acordo com a maioria dos relatos mais detalhados, como os da Al Jazeera e Asia Times. E mais de um analista francamente hostis a Ahmadinejad ponderaram, antes da votação, que ele tinha chance de vencer pela consistência (independentemente da qualidade) do seu programa de governo.
Sem dizer que, na pancadaria oral, ele expôs abertamente as mazelas da república islâmica, a ponto de, no ar, acusar de corrupção o segundo nome com maior controle da máquina institucional, o aiatolá Ali Rafsanjani (abaixo apenas do chefe de Estado e da igreja, Ali Khamenei). Ahmadinejad disse na tevê, e analistas asiáticos confirmam, que três poderosos ex-presidentes se uniram contra ele: Rafsanjani, Ali Moussavi (o candidato adversário) e Mohamed Khatami. Foram às urnas 85% dos eleitores, taxa rara em muitas democracias puro-sangue de hoje.
* Flávio Dieguez é jornalista. Foi editor da revista Superinteressante até 2000 e chefe da Agência Brasil entre 2004 e 2006.
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