O processo de mudança em Cuba deu vida a análises muito radicais, onde uma parte da esquerda denuncia a traição ao socialismo, e certa parcela direita comemora o fracasso do regime. Vistas daqui, as coisas não são tão simples assim, pelo contrário.
Desde que Raúl Castro assumiu o comando, em julho de 2006, sua principal preocupação tem sido obter números confiáveis sobre a economia. Em uma reunião do comitê central, chegou ao ponto de dizer “não sou tão bom quanto meu irmão” e, desde então, admitiu que teria de levar em conta essa realidade.
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De fato, os dados que Fidel manejava eram os que seus assessores lhe fabricavam, destinados a um mundo ideal no qual ele acreditava firmemente.
O resultado: não há mais recursos para seguir dando gratuitamente a 12 milhões de pessoas educação, saúde, habitação, eletricidade, água, almoço no trabalho e uma carteira para alguns alimentos. Cuba não tem indústrias significativas; 50% das terras férteis estão ociosas e o único mineral, o níquel, já foi vendido ao Canadá, graças a um péssimo acordo feito há muito tempo. Descobriu-se petróleo, mas não há recursos para explorá-lo imediatamente. O embargo norte-americano, embora se exagere absurdamente sobre seus efeitos, tem impacto real sobre o turismo. Cuba exporta serviços, sobretudo médicos, em troca de petróleo venezuelano.
Como consequência, se debate por todo o país alguns “alinhamentos para o plano qüinquenal”, que serão adotados no Congresso do Partido Comunista (PPC) em abril. O debate criou um clima de franqueza, críticas e propostas, o que por si só é uma novidade absoluta. Resta saber quantas modificações serão introduzidas no texto original que circula.
Os alinhamentos implicam em um valente esforço para manter um cenário socialista, aceitando a nova realidade. Cuba segue sendo socialista, mas se reconhece a necessidade de maior produtividade, ajustes e utilização da colaboração individual dos cidadãos.
Entre as várias ideias, creio que são três as mais importantes. Primeira: o PPC deixará a direção e produção econômicas, que serão responsabilidade do Estado. Segunda: o Estado descentralizará todos os níveis possíveis, buscando, no processo, cortar custos e eliminar desperdícios. Terceiro: o cidadão se transformará em um motor do crescimento, tomando iniciativas “por conta própria”.
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O trabalhador autônomo é a grande novidade. Não é uma abertura para a criação do setor privado, mas sim a possibilidade que os indivíduos possam exercer atividades econômicas (não empresas), e organizem cooperativas de primeiro e até segundo nível (para compra e venda de serviços comuns).
Isto se acompanha com a redução do setor estatal, que até agora era o único empregador. Serão demitidas, acredita-se, até 1.300.000 pessoas, que provavelmente se tornarão autônomas.
Desse total, 500 mil já estão sendo despedidas. Em minhas viagens pelo país, estimei que os cortes de pessoal de hotéis, jardins botânicos, entre outros, se situavam em 20%. O Estado está outorgando licenças comerciais a todos que lhe pedem. Quantos desses demitidos se transformarão em empresários individuais, sem possuírem um plano de microcréditos (já não há recursos) e sem terem acesso a matérias-primas (escassas e de difícil importação)? Estamos ainda para ver.
Em meus encontros com teóricos do PPC, se enfatizou que Cuba deixava o centralismo democrático, herança soviética, para construir um caminho socialista próprio, a descentralização democrática e socialista. As decisões se tomarão na base, e as pessoas terão maior responsabilidade no percurso do caminho socialista. Mas no novo Plano Quinquenal, os recortes a nível local serão parte do planejamento central.
Algumas conclusões me parecem indiscutíveis. Iniciou-se em Cuba um clima de debate e franqueza sem precedentes. Não se abre um setor de empresas privadas, mas se introduz um certo nível de mercado. E embora se busque atrair investimentos estrangeiros, se anunciam rigorosos e duros controles (o que não é a melhor maneira de atraí-los). Supõe-se caber a esse momento do trabalhador autônomo, gerado por demissões em massa, o mecanismo para aumentar a produção reduzindo custos.
Claramente este é o resultado de um compromisso entre duas alas do partido e do governo: a ortodoxa tradicional, que pretendia manter-se nesse sistema com mais de 50 anos, mas que, frente à realidade, aceita dar alguns passos em direção à competitividade e à eficiência na busca por uma saída para a crise; e a ala reformadora e modernizante. Muitos dizem que desta maneira, a velha guarda (que em oito a dez anos terá desaparecido), busca mudar o menos possível para que seu mundo perdure enquanto eles viverem.
Acredito que este é um processo irreversível. A maioria dos cubanos viu o que se passou com a queda do comunismo soviético e a chegada dos Ieltsins. Sabem que depois do comunismo viria a seguir um capitalismo ultra selvagem, com um elemento adicional tipicamente cubano: os cerca de dois milhões de cubanos na Flórida, todos ferozmente competitivos, em sua maioria republicanos de direita, com capital e um grande sentimento de revanche que alimentam desde sua saída da ilha. Um exemplo: em Miami há 12 estúdios de arquitetura com o mapa de Havana dividido em 12 seções, que já têm a lista de repartição da cidade preparada para uma grande operação imobiliária que a transformaria em uma cópia de Miami. Para realizá-la, contam com dinheiro e know-how.
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Em troca, os cubanos de Cuba, que não contam nem com o capital nem com a experiência de uma sociedade capitalista, temem que os cubanos de Miami voltem, recuperem suas casas e seus bens (desalojando a muitos que não saberão para onde ir) e se apoderem da economia insular em nome da democracia, da modernidade e do famoso livre mercado.
Terão de esquecer os livros por 25 centavos e o cinema de dez centavos, assim como o ballet, os museus, todas as manifestações artísticas e desportivas, a assistência médica, a educação, todas atividades praticamente gratuitas. Os cubanos ganham atualmente quase 40 dólares mensais. Quando passarem a pagar pelos preços reais dessas coisas, os aposentados morrerão de fome. E, em pouco tempo, os cubanos passariam de pobres a miseráveis.
Entretanto, Raúl tem razão. Em 1932, sem automóveis e com carros de boi como meio de transporte e quatro milhões de habitantes, Cuba produzia oito milhões de toneladas de açúcar. Hoje, com 12 milhões de habitantes e infraestruturas modernas, só chegam a um milhão e meio. Antes da revolução, havia seis milhões de pessoas e 12 milhões de vacas. Hoje é o contrário. Oitenta por cento do material de construção é importado, assim como 32% dos alimentos. Simplesmente não há dinheiro para continuar com a quimera da revolução.
Ninguém pode prever o que vai acontecer. Com sorte, alguns setores socialistas permanecerão e os sofrimentos serão menores. Mas o novo socialismo significará que a imensa maioria das pessoas terá de aceitar ser realmente pobre, e isto, com as imagens que chegam do sonho americano a apenas 90 milhas de distância, não será possível.
A ironia é que tudo isso acontece justamente quando o mito do sonho americano está em declínio, lento, porém irreversível, em razão dos golpes da realidade econômica dos Estados Unidos. Seria interessante voltar a analisarmos a situação em 2016, na fase de conclusão do Plano Quinquenal, e ver onde estaremos…
* Artigo publicado originalmente no site OtherNews. Roberto Savio é editor do OtherNews, fundador e presidente emérito da agência de notícias IPS (Inter Press Service).
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