O dia 27 de julho marca o 70° aniversário do cessar-fogo instaurado em 1953 na Guerra da Coreia. Nos três anos que antecederam esse aniversário, movimentos pacifistas na Coreia do Sul têm organizado a campanha “Korea Peace Appeal”, que tenta substituir o acordo de armistício por um acordo de paz mais abrangente para encerrar os mais de 70 anos da Guerra da Coreia. Os aniversários que marcam a data vêm e vão, mas ao contrário da paz, as administrações de Joe Biden, Yoon Suk Yeol e Fumio Kishida estão alimentando as tensões a fim de desenvolver uma união “a la OTAN” entre EUA, Japão e Coreia do Sul, formando assim uma aliança trilateral contra a China.
O presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol tem desempenhado bem seu papel de coadjuvante. Ao desconversar sobre a história do colonialismo japonês em seu país, Yoon abriu caminho para uma aliança entre os dois aliados dos EUA na região: o “eixo de sustentação” Japão e a “pedra angular” Coreia do Sul. Suas concessões diplomáticas foram fundamentais para superar o acordo dos EUA com países asiáticos que compõe o Sistema de São Francisco – após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, os EUA sacrificaram a justiça para as vítimas do colonialismo japonês para travar a Guerra Fria. Para blindar a aliança trilateral de futuras pressões democráticas, Biden, Yook e Kishida anunciaram a declaração conjunta “Spirit of Camp David” em Camp David, nos EUA, no dia 18 de agosto de 2023, que visa institucionalizar reuniões e conferências anuais entre os aliados, independente de futuras mudanças de governo.
Numa entrevista em 28 de agosto, Francis Daehoon Lee tratou da aliança trilateral e dos movimentos pacifistas sul-coreanos. Ativista de longa data e veterano do movimento de democratização da Coreia, Lee foi fundador da organização Solidariedade Popular para a Democracia Participativa, é professor dos estudos pela paz na Universidade de Sungkonghoe e diretor da Peacemomo, um instituto de pesquisa que advoga pela paz e educação.
Intimidação nuclear
Lee aponta que, ao contrário da proposta do governo de Park Geun-hye, de dez anos atrás, a dissuasão ampliada(feita com armas nucleares norte-americanas) assumiu, sob Yoon, uma “natureza preventiva”. Além disso, a Coreia do Norte é apenas “um pretexto para que os EUA preparem, exercitem e treinem suas forças militares para uma estratégia de reação preventiva no nordeste da Ásia” contra a China. Por outro lado, a China passa longe da política de “uso da força militar para mudar a ordem internacional”. Lee conclui que, “para a China, Taiwan não é uma questão internacional; é uma questão doméstica.” Para Lee, a China sempre construiu sua influência através de relações econômicas. Em seu entendimento, essa influência é reforçada pelos compromissos assumidos por Pequim através da “Global Security Initiative” (Iniciativa de Segurança Global) que preza por uma “segurança indivisível”, que prevê que a segurança de uma das partes do acordo é intrinsecamente ligada à segurança de outros.
O eixo e a pedra angular?
Nos documentos militares norte-americanos que abordam a região, os termos “eixo de sustentação” e “pedra angular” são constantemente citados para descrever a Coreia do Sul e o Japão. Mas o que significam estes termos e como se correlacionam?
Lee começa explicando como a economia japonesa, aliada à sua tecnologia de guerra nuclear e suas armas de longo alcance lhe conferem maior valor estratégico. Isto torna o Japão a “pedra angular” sobre a qual a segurança regional dos EUA é construída. Por outro lado, os “recursos militares terrestres de curto alcance” da Coreia do Sul a tornam útil “da mesma forma que as forças da Ucrânia são úteis: eles podem lutar até a morte no campo de batalha, podem consumir seus próprios recursos e povo”.
Afinal, apesar de todos os ataques norte-americanos à China, ainda existem limites para a escalada de tensões: durante a Era Trump, os EUA viraram uma sociedade dividida; “a política bipartidária é incapaz de conquistar o povo”, diz Lee. Isso torna a estabilidade econômica um fator vital. Enquanto Trump e Biden “optaram por enfraquecer a China ao invés de coexistir com ela”, a instabilidade econômica impôs limites nos EUA ao “destruir seus laços econômicos com a China”. Lee nota que, apesar da tentativa norte-americana de desvencilhar sua economia da chinesa, ambos os países tiveram um aumento no volume de suas relações comerciais, enquanto o vínculo comercial da China com outros países foi reduzido.
Lee faz uma analogia entre a postura dos EUA em relação à Coreia do Sul com a sua postura em relação à Ucrânia. Os países ocidentais querem que a Ucrânia lute pelo seu território e que ganhe a guerra. No entanto, mesmo que eles financiem a guerra globalmente, eles querem em última análise que a luta seja “localizada”. E se um plano similar estiver na mesa para o nordeste ásiatico? A melhor opção seria não ter forças norte-americanas combatendo forças chinesas. Porém, as forças japonesas não estão aptar para de fatocombater os chineses. Elas são treinadas e financiadas para desempenharem apenas seu papel como redes de suprimento e de operações globais, bem como forças defensivas. Então quem estaria pronto para combater os chineses? A Coreia do Sul, o eixo de sustentação regional dos EUA.
Mathew Manning / DVIDSHUB
Forças Armadas dos EUA e da Coreia do Sul participam de exercício militar anfíbio durante o exercício conjunto Ssang Yong, em 2014
Impedindo a guerra no nordeste asiático
Construir um movimento pela paz na Coreia do Sul a fim de evitar uma nova Guerra Fria implica compreender os movimentos em prol da paz que atuam na Coreia. Perguntei a Lee o que ele pensa a respeito da campanha “Korea Peace Appeal” e quais desafios os movimentos sociais enfrentarão adiante.
Tendo participado da campanha, Lee nos dá algumas percepções e críticas sobre o movimento. O propósito da campanha era “chamar a atenção do mundo [para o fato] de que nós, coreanos, queremos a paz”. O apelo era por um “meio termo entre a esquerda e a direita dentro do movimento pela paz”. Como a campanha tentou encontrar “um meio-termo e se aproximar do público mais amplamente, ela inevitavelmente se tornou muito simplista” e “muito focada na Coreia”.
Isso contrasta comas visões de Lee para fomentar a paz na região. O movimento do qual faz parte, Peacemomo, propõe um relatório intitulado “alerta antecipado para os Perigos de Conflito no Nordeste da Ásia.” Criar um sistema de “alerta antecipado” pressupõe o entendimento de que o nordeste ásiatico faz parte de um teatro de guerra, no qual as ações de um único ator deste conflito levaria a diversas reações e ações de outros atores, nos deixando mais próximos de uma guerra. O “alerta antecipado”, de acordo com Lee, clama para que organizações da sociedade civil da região observem e alertem seus respectivos povos sobre os passos dados em direção ao conflito: os planos do Japão de “duplicar seu orçamento de defesa” dentro de cinco anos e “possuir capacidades de contra-atacar”; os exercícios aéreos conjuntos entre Coreia do Sul e os EUA contra a Coreia do Norte; a declaração ameaçadora da Coreia do Norte de que “se o centro de comando estiver ameaçado, uma resposta nuclear automática e imediata será realizada”, diz Lee.
Em última instância, um acordo de paz na Coreia não é possível sem que haja paz na região como um todo. Para alcançá-la, os movimentos sociais deverão lutar pelo desarmamento e para que os recursos, ao invés de serem direcionados para esforços de guerra, comecem a ser direcionados para o bem dos povos.
(*) Dae-Han Song é o diretor do International Strategy Center e faz parte do coletivo No Cold War
(*) Tradução de Raul Chiliani