No ano em que o Peru alcançava seu Bicentenário, Pedro Castillo, o partido Peru Livre (autoproclamado marxista-leninista-mariateguista) e o campesinato indígena derrubavam a maior unidade das burguesias peruanas das últimas décadas.
Em 2021, em um segundo turno polarizado entre uma candidatura de esquerda, que invocava a nacionalização do petróleo e gás e a convocação de uma Assembleia Constituinte, e uma de extrema direita, liderada pela filha do ditador Alberto Fujimori, a Keiko Fujimori, Lima e as elites locais votavam em um projeto que reivindicava a ditadura neoliberal corrupta e sanguinária da década de 90, enquanto os rincões dos Andes diziam “ya basta”.
A vitória sobre o fujimorismo no segundo turno das eleições presidenciais peruanas provou, uma vez mais, que as elites latino-americanas não têm pudor em flertar com o fascismo para manter a super exploração das classes trabalhadoras. E, também, que inexiste compromisso democrático por parte de tais setores.
Derrotados nas urnas, não aceitaram o resultado: eleito, Pedro Castillo lutou por mais de um mês para ser considerado presidente, período no qual meios empresariais de comunicação, militares e entidades patronais fizeram de tudo para impedir a posse, ou, ao menos, fragilizar o governo eleito e fazê-lo recuar quanto à plataforma que saiu das urnas.
Em verdade, desde o segundo turno que tal programa já fora flexibilizado para enfrentar a grande aliança patronal que se formou ao redor de Fujimori.
Eleito nas urnas, Castillo passou por todo um terrorismo midiático que bradava a alta da inflação, a quebra da economia, o renascimento e retorno do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso.
Sua posse, portanto, se deu mediada por uma tutela militar e recuo programático. Apesar disto, Castillo assumiu e, ao nomear seu gabinete, atribuiu ao marxista do Peru Livre Guido Bellido o cargo de primeiro-ministro, e ao advogado e ex-guerrilheiro Héctor Béjar a chefia das Relações Exteriores, compondo, assim, um Ministério abertamente de esquerda.
Como consequência, as burguesias, a imprensa limeira, o sistema de Justiça e o Congresso desataram uma verdadeira declaração de guerra ao governo.
Três caminhos possíveis apresentavam-se no horizonte: a cooptação do governo aos derrotados nas urnas – e a possibilidade de seu posterior enfraquecimento ainda em maiores dimensões; o avanço da escalada golpista e a derrubada relâmpago de Castillo; uma direção política da gestão voltada a coesionar as classes trabalhadoras rurais e urbanas e, com o protagonismo do campesinato indígena, alcançar um grau de mobilização a garantir o programa eleito nas urnas.
Reprodução/ Presidência Peru
Castillo ficou 16 meses no poder peruano até ser afastado pela Congresso, após tentar fechá-lo
Castillo, porém, optou pela cooptação. Bellido durou pouco mais de dois meses; logo após, assumiu Mirtha Vásquez, de centro-esquerda. Mais tarde, o presidente concretizou seu giro político e entregou o gabinete ao comando de Héctor Valer, um congressista de extrema direita.
O cavalo de pau perpetrado por Castilho significou, de um lado, seu afastamento e perda de bases populares e, de outro, a procura eterna por grupos de direita que sustentassem o governo contra o próximo golpe em curso, seja sua origem no Parlamento, no Ministério Público ou na imprensa.
Ao enfrentar a quarta moção de vacância, Castilho tomou a pior decisão possível. Fechou o Congresso – poderia, por exemplo, ter convocado novas eleições –, decretou reestruturação do sistema de Justiça e impôs toque de recolher. Em nada diferiu do golpe de Estado de Alberto Fujimori em 1992, exceto que, à época, o ditador contava com o apoio do patronato para implementar o programa neoliberal, mesmo que para isso fosse necessário uma ditadura.
A oposição de direita, então, pôde finalmente interpor o seu golpe de Estado. Com 101 votos dos 130 legisladores, Castillo foi destituído e, logo após, preso, apesar dos protestos do México de que o direito ao asilo do presidente teria sido violado.
A sua vice, Dina Boluarte, que há tempos já havia dito não coincidir com os ideais do Peru Livre, partido ao qual estava filiada ao ser eleita em 2021, e, com tal declaração, se mostrou como uma boa alternativa em caso de sucesso do golpe de Estado, já antecipou que não convocará eleições e seguirá em governo de “conciliação nacional”.
O Peru Livre, que foi contrário à tentativa de Castillo ao querer fechar o Congresso e, também, ao golpe de Estado do Parlamento, já proclamou que lutará pela liberdade do agora ex-presidente e por uma Assembleia Constituinte como única alternativa para solucionar a crise política peruana, que se arrasta há décadas.
Para nós, fica a lição de que as vitórias das esquerdas neste segundo ciclo de governos populares na região não é a repetição do primeiro, iniciado com a vitória de Hugo Chávez, em 1998, na Venezuela. Agora, há uma crise do capital, com a consequente necessidade das burguesias de aumentar a exploração sobre as classes trabalhadoras e, ademais, uma extrema direita organizada e militante.
Nossos governos devem, de um lado, lutar de acordo com a correlação de forças na qual estão inseridos; porém, de outro, fazê-lo de modo a alterar a correlação de forças, ao invés de capitular perante ela.
(*) Daniel Valença é professor da graduação e mestrado em direito da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa), coordenador do Grupo de Extensão e Pesquisa em Direito, Marxismo e América Latina (Gedic) e vice-presidente do PT/RN.