No último 18 de março, um dia após sua vitória acachapante nas urnas, o presidente russo Vladimir Putin celebrou, em um pequeno discurso na Praça Vermelha, os dez anos de anexação da península da Crimeia à Federação Russa, após referendo em que 96% dos votantes se manifestaram favoráveis à reunificação.
Esse evento, sem dúvidas, foi um dos pontos altos da projeção geopolítica da Rússia desde o início do processo de reconstrução nacionalista dos anos 2000. Mas também foi um episódio que resultou em uma forte deterioração das relações entre a Rússia, os Estados Unidos e seus aliados europeus.
Os Estados Unidos, cada vez mais empenhados em obstaculizar a projeção geopolítica da Rússia, usaram a anexação da Crimeia como a justificativa perfeita para lançar em direção a Moscou um dos seus instrumentos de pressão já utilizados contra países como o Irã, a Venezuela e Cuba. Assim, em 6 de março de 2014, antes da realização do referendo, mas já sentindo o clima na Crimeia, o presidente Barack Obama assinou a Ordem Executiva 13660 e deu início a uma série de restrições à economia russa, que, seguida de outras ordens, avançaria no sentido de criar dificuldades aos setores financeiro, de energia e defesa da Rússia.
A União Europeia não ficou para trás e, em uma agenda bastante coordenada com os Estados Unidos, correu para impor restrições à economia russa, argumentando que a anexação da península da Crimeia era ilegal e que o referendo era ilegítimo. Os europeus condicionaram o levantamento das sanções ao cumprimento dos Acordos de Minsk I e II (assinados em setembro de 2014 e de fevereiro de 2015, respectivamente), o que dependia também da Ucrânia, país não sancionado. Recentemente, a ex-chanceler alemã Angela Merkel revelou que os acordos foram uma forma de ganhar tempo e armar a Ucrânia para um eventual conflito com a Rússia.
Os Estados Unidos pegaram gosto pela coisa e passaram a atualizar as restrições à Rússia valendo-se dos pretextos do momento. Assim, novas rodadas foram implementadas sob a justificativa de que a Rússia teria usado armas químicas na Síria a partir de 2015, que o serviço secreto russo teria envenenado o ex-agente Sergei Skripal no Reino Unido em 2018, e que a Rússia teria interferido nas eleições norte-americanas de 2016. A União Europeia, por sua vez, agarrada na justificativa dos Acordos de Minsk, não levantou as restrições e passou a renová-las automaticamente.
O objetivo era, sobretudo, criar dificuldades no setor energético russo, impondo restrições a investimentos e aquisição de tecnologia estrangeira pela Rússia. E também no setor de defesa, criando obstáculos para as vendas de armas russas, colocando em xeque importantes contratos técnicos-militares de Moscou com países como a Índia e a China.
É verdade que as sanções de dez anos atrás parecem um passeio no parque em comparação ao que ocorreu após a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022. Mas, lá e cá, os objetivos são os mesmos; o que se alterou foi o escopo e a intensidade.
O que os Estados Unidos pretendiam e pretendem, com a ajuda de seus parceiros europeus, é exercer pressão financeira e econômica sobre a Rússia, transformar um país em um parceiro tóxico no sistema internacional, mudar o curso de sua política externa e eliminar a Rússia como um ator relevante em diversos tabuleiros geopolíticos, principalmente no espaço pós-soviético. Mas nenhum dos impactos que as restrições causaram na economia russa se traduziram em resultados tão ambiciosos.
De imediato, em 2014, através de medidas financeiras, institucionais e diplomáticas, um regime de contra-sanções foi implementado com forte atuação e sob a liderança do Estado russo. E foi nesse contexto, quando os norte-americanos, contando com a inexplicável complacência dos europeus, tentaram cercar a Rússia economicamente através do enfraquecimento de seu setor energético, que Moscou assinou com Pequim um acordo que estabelecia a entrega de 38 bilhões de metros cúbicos de gás russo através do gasoduto Power of Siberia, que começou a ser construído em 1º de setembro 2014 e passou a operar em dezembro de 2019. Foi também nesse cenário que os bancos centrais da Rússia e da China assinaram acordos de swap e intensificaram a cooperação financeira entre os dois países, avançando no comércio rublo/yuan.
Se estratégia desde 2014 era criar dificuldades econômicas e financeiras para gerar um processo de desestabilização interna na Rússia, mudar o curso de sua política externa e neutralizar sua projeção geopolítica, o regime de sanções inaugurado há uma década está longe de alcançar seus objetivos. E, dez anos depois, a Crimeia segue sendo parte da Federação Russa.
(*) Rose Martins é analista internacional e pesquisadora, formada em Relações internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestra em Economia Política Internacional