No dia 23 de fevereiro de 2022, tropas da Federação Russa invadiram o território da Ucrânia e iniciaram um conflito armado de alta intensidade. A ofensiva militar russa em solo ucraniano foi deflagrada como uma resposta ao rechaço dos Estados Unidos à proposta de neutralidade da Ucrânia oferecida por Moscou em dezembro de 2021, em meio à intensificação da crise na região do Donbass.
Em um sentido mais amplo, foi também uma resposta à estratégia geopolítica de cerco dos Estados Unidos em direção às fronteiras russas, formulada durante a Guerra Fria e revitalizada no início dos anos 2000 frente ao renascimento da Rússia promovido pelo governo de Vladimir Putin.
Para o Kremlin, a interferência dos Estados Unidos na política interna da Ucrânia com vistas a atingir a Rússia começou há quase duas décadas, mais especificamente com a Revolução Laranja, em 2004 (que integra o que ficou conhecido como Revoluções Coloridas, também ocorridas na Geórgia, na Sérvia e no Quirguistão). A Rússia interpretou como interferência externa a participação de ONG’s ocidentais no processo que levou à presidência da Ucrânia um quadro pró-ocidente. Essa compreensão dos acontecimentos marcou o início de uma de confrontação indireta entre a Rússia e os Estados Unidos, e um dos primeiros estágios da crescente rivalidade que passou por uma série de capítulos e nos dias atuais parece ter atingido seu ponto mais alto.
Em 2007, em discurso na Conferência de Segurança de Munique, Putin deixou claro que considerava a expansão da OTAN uma provocação, além de acusar os Estados Unidos de ultrapassar suas fronteiras nacionais de todas as maneiras e violar as regras do Direito Internacional.
No ano seguinte, a Rússia agiu em auxílio das províncias separatistas da Abecásia e da Ossétia do Sul na Guerra da Geórgia, e deu uma grande demonstração de seu poder militar ao derrotar muito rapidamente as forças georgianas. Imediatamente, os Estados Unidos e seus parceiros europeus condenaram a posição russa, ignorando que a agressão havia partido da Geórgia e que este país já havia reconhecido tais províncias como independentes nos anos 1990. Para alguns analistas russos, essa teria sido a resposta de Moscou às discussões sobre as adesões da Geórgia e da Ucrânia à OTAN, durante a cúpula da organização em Bucareste naquele mesmo ano.
Em 2009, Rússia e Estados Unidos falaram em um reset nas relações, mas, de acordo com Dmitri Medvedev, esse reset era impossível tendo em vista a “expansão sem fim da OTAN”. Entre 1999 e 2009, a aliança admitiu doze novos membros, incluindo países que haviam integrado o Pacto de Varsóvia. Ainda no contexto da deterioração das relações, os Estados Unidos colocaram em projeto a instalação de um escudo antimísseis balísticos na Polônia e na República Tcheca, o que na época Sergei Lavrov classificou como ações provocativas da OTAN.
Kremlin.ru
O presidente russo, Vladimir Putin, durante encontro com o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, em Moscou. 29/06/17
Em 2013, sob a presidência do democrata Obama, a Ucrânia tornou-se definitivamente peça central da estratégia geopolítica dos Estados Unidos em seu objetivo de enfraquecer a Rússia. A derrubada do presidente democraticamente eleito Viktor Yanukovytch foi considerada pela Rússia uma interferência dos Estados Unidos na Ucrânia com vistas a aumentar o cerco em direção ao seu território. Como uma espécie de resposta, e com o objetivo de resguardar o uso da base naval de Sebastopol e o acesso de sua frota ao mar Negro, a Rússia anexou a região da Crimeia após um referendo em que a população votou massivamente a favor da anexação.
Logo após o referendo e o reconhecimento de Putin de sua legitimidade, os Estados Unidos deram um novo passo na política de contenção da Rússia: o estabelecimento de sanções econômicas. Dessa forma, em uma agenda uniformizada com a União Europeia, foram estabelecidas uma série de restrições ao país, sobretudo na aquisição de tecnologias ligadas ao setor energético, esteio da economia russa.
Um novo capítulo na conturbada relação entre os dois países se abriu em dezembro de 2021, quando os Estados Unidos rechaçaram a proposta russa de negociação sobre a condição da Ucrânia.
A negativa dos Estados Unidos em negociar a neutralidade ucraniana teve como resultado a explosão de violência em 23 de fevereiro do ano seguinte, chamada por Moscou de “operação especial nas fronteiras russas”. Após a invasão, o regime de sanções tornou-se ainda mais rigoroso e se converteu num verdadeiro ataque econômico e financeiro, incluindo o congelamento de ativos e reservas da Rússia e sua exclusão do sistema Swift.
É fato que guerra na Ucrânia envolve questões locais e, para Putin, até mesmo históricas. Mas é impossível entendê-la em sua totalidade sem o componente da contenção da Rússia pelos Estados Unidos, como se deu a trajetória da escalada de tensões, a participação da OTAN e a capacidade de resposta russa.
Passados dois anos de guerra, a administração Biden tem tido dificuldades em se comprometer com o financiamento direto da Ucrânia, e a contraofensiva de junho de 2023 não apresentou resultados. Até o momento, a vitória está nas mãos da Rússia, que além da superioridade no campo de batalha e da conquista de territórios, frustrou os objetivos norte-americanos de isolamento político e asfixia econômica e financeira de Moscou.
(*) Rose Martins é analista internacional e pesquisadora, formada em Relações internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestra em Economia Política Internacional