Desde setembro de 2008, quando a desregulamentação causou um desastre econômico mundial e todo mundo virou keynesiano novamente, não tem sido fácil a vida dos seguidores fanáticos do falecido economista Milton Friedman (1912-2006). Sua versão do fundamentalismo de livre mercado está tão profundamente desacreditada que seus admiradores mostram-se cada vez mais desesperados para reivindicar vitórias ideológicas, por mais exageradas que sejam.
Vem ao caso um exemplo especialmente desagradável. Dois dias depois de um terremoto devastador ter atingido o Chile, o colunista Bret Stephens, do Wall Street Journal, dizia a seus leitores1 que “o espírito de Milton Friedman pairava, protetor, sobre o Chile”, já que, “graças, em grande parte, a ele, o país resistiu a uma tragédia que, do contrário, teria levado a um apocalipse (…). Não por acaso. os chilenos viviam em casas de tijolos – e os haitianos, em casas de palha – quando chegou o lobo tentando derrubá-las com um sopro”.
De acordo com Stephens, as medidas radicais de livre mercado prescritas ao ditador chileno Augusto Pinochet por Friedman e seus infames Chicago Boys são a razão pela qual o Chile é uma nação próspera que dispõe “de códigos de construção civil que estão entre os mais rigorosos do mundo”.
Há um grande problema nesta teoria: o código moderno de construção civil do Chile, redigido para que as construções resistam a terremotos, foi adotado em 1972. A data é muito significativa, pois isso foi um ano antes de Pinochet tomar o poder por meio de um sangrento golpe de Estado apoiado pelos EUA.
Ou seja, se existe alguém a quem atribuir o mérito por esta lei, não é Friedman nem Pinochet, e sim Salvador Allende, o presidente socialista chileno eleito democraticamente. O certo é que é preciso agradecer a muitos chilenos, pois as leis respondiam a uma história cheia de terremotos, e as primeiras regras foram adotadas na década de 1930.
Parece significativo, no entanto, que a lei tenha sido promulgada ainda sob um sufocante embargo econômico (“Que chie a economia”, teria grunhido Richard Nixon quando Allende venceu as eleições de 1970). O código foi atualizado nos anos 1990, bem depois de Pinochet e os Chicago Boys terem finalmente abandonado o poder e o país ter retornado à democracia.
Não surpreenderá que, como aponta Paul Krugman2 , Friedman fosse ambivalente em relação aos códigos de construção civil, pois os considerava mais uma violação da “liberdade capitalista”.
Graças a Allende
Quanto ao argumento de que as medidas friedmanianas são a razão pela qual os chilenos vivem em “casas de tijolos” e não “de palha”, fica claro que Stephens não sabe nada sobre o Chile anterior ao golpe. O Chile dos anos 1960 contava com o melhor sistema sanitário e educacional do continente, além de um efervescente setor industrial e uma classe média em rápido crescimento. Os chilenos acreditavam em seu Estado, motivo pelo qual elegeram Allende para ampliar ainda mais esse projeto. Depois do golpe e da morte de Allende, Pinochet e seus Chicago Boys fizeram tudo o que puderam para desmantelar a esfera pública chilena, leiloando as empresas do Estado e reduzindo as regulações financeiras e comerciais.
Criou-se uma enorme riqueza nesse período, mas a um preço terrível: no início dos anos 1980, as medidas de Pinochet recomendadas por Friedman haviam provocado uma rápida desindustrialização, multiplicando o desemprego por dez e motivando uma explosão de favelas claramente instáveis. As medidas também levaram a uma crise de corrupção e dívida tão grave que, em 1982, Pinochet se viu obrigado a demitir os assessores dos Chicago Boys e nacionalizar várias instituições financeiras desregulamentadas (isto soa familiar?).
Felizmente, os Chicago Boys não conseguiram destruir tudo o que Allende havia conquistado. A empresa nacional do cobre, Codelco, continuou nas mãos do Estado, gerando riqueza para os cofres públicos e impedindo que os Chicago Boys fizessem a economia do Chile entrar em um rápido e completo declínio. Eles tampouco conseguiram se desfazer do rigoroso código de construção civil do Chile, um descuido ideológico pelo qual todos devemos agradecer.
(Com meu agradecimento ao Center for Economic and Policy Research por pesquisar as origens do código de construção civil chileno)
Notas:
[1] “How Milton Friedman Saved Chile”, Wall Street Journal, 1º de março de 2010. O artigo começa assim: “Milton Friedman morreu há mais de três anos. No entanto, seu espírito certamente pairava, protetor, sobre o Chile nas primeiras horas do sábado. Graças, em grande parte, a ele, o país resistiu a uma tragédia que, do contrário, teria levado a um apocalipse.” O artigo de Stephens, além de citar literalmente as afirmações de Klein, traz ainda mais respostas do que ataques, pois contém menções a Klein como: “Na mitologia da esquerda – sobretudo em 'A Doutrina do Choque', tedioso calhamaço de 2007 de Naomi Klein -, os Chicago Boys não eram apenas estrangeiros companheiros de cama da ditadura de Pinochet. Eram cúmplices de seus crimes”.
[2] Paul Krugman, “Fantasies of the Chicago Boys”, The New York Times, 3 de março de 2010: “Friedman não era exatamente amigo desses códigos (…) os considerava uma forma de gasto público, posto que 'impõem custos nos quais não se desejaria incorrer de modo privado'.”
Naomi Klein é escritora, autora dos livros Sem Logo: a tirania das marcas em um planeta vendido e, mais recentemente, de Cercas e Janelas: na linha de frente do debate sobre a globalização. Seu último livro é A Doutrina do Choque. Artigo publicado na revista Bitácora (Uruguai).
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