“Esta pesquisa
descortinou que, dos 59 guerrilheiros desaparecidos, 29 morreram em confronto
na mata e 22 foram executados; um guerrilheiro foi ‘justiçado’ (executado)
pelos próprios companheiros; e sete desaparecidos sobreviveram – fizeram
delação premiada e trocaram de identidade dentro do programa de proteção às
testemunhas. São chamados ‘mortos-vivos’. Entre os moradores da região, pelo
menos 10 deles foram mortos pelos militares e cinco foram ‘justiçados’ pelos
guerrilheiros. Há ainda 21 nomes da região que constam em documentos militares
com paradeiro ‘desconhecido’, mas cujos destinos demandam investigação. Assim,
o saldo pode chegar a 36 camponeses mortos. Por fim, pelo menos 10 militares
morreram no Araguaia, de acordo com documentos confidenciais do Exército obtido
por esta pesquisa. Como saldo do fratricídio, 51 guerrilheiros, 10 militares e
pelo menos 15 camponeses que tombaram em algum lugar das selvas amazônicas.” (p.
61)
Há um interessante debate historiográfico que emerge das
páginas de Borboletas e Lobisomens – Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia, de Hugo Studart (Ed. Francisco Alves, 2018, 660 páginas)
e que, de algum modo, se anuncia no trecho acima, retirado do segundo capítulo
da obra sobre a Guerrilha do Araguaia, movimento armado que, entre 1966 e 1974,
pretendeu resistir ao governo militar que se instalara no país a partir o golpe
de 1964.
Este debate, que poderia se encerrar na dificuldade em
tratar de tema tão carregado de paixões ideológicas, também é visto em duas
dimensões que se complementam e que tornam a apresentação do livro um desafio.
De um lado, a louvável busca por uma intersecção entre uma abordagem que
privilegie os eventos em suas circunstâncias políticas e sociais e uma outra,
centrada nos indivíduos, que apela, com justiça, às histórias de cada um dos
que ali, em meio a selva no sul do estado do Pará, travaram uma luta entre a
vida e a morte, ou entre a “vida e o mundo”, como Studart, parafraseando Hannah Arendt, gosta de tratar em suas mais de
600 páginas. Uma segunda dimensão, também louvável, mas muito perigosa, trata
da tentativa de reconstrução da História pelo entrelaçamento entre a
documentação disponível, que o trabalho de pesquisador revela, organiza e dá
sentido, e os relatos de sobreviventes e/ou daqueles que indiretamente
participaram desta “luta fratricida”, como os camponeses que por lá viviam e
parentes dos mortos e desaparecidos nas margens do rio Araguaia.
Neste perigoso caminho, Studart tanto erra quanto acerta em
sua tentativa de reconstruir aquele que foi, possivelmente, o mais aguerrido
movimento de reação (e ação) contra o governo militar. A guerrilha do Araguaia,
movimento armado e braço do PC do B (Partido Comunista do Brasil), mesclava
jovens militantes recrutados nas universidades com experientes lideranças que
acreditavam tanto na inevitabilidade de uma luta armada contrária ao governo
militar, como também na inevitabilidade da revolução que imaginavam fazer em
nome da superação da ordem capitalista e burguesa. Inspirados e treinados tanto
pela versão soviética do socialismo, quanto pela chinesa maoísta, estes jovens
se embrenharam na floresta a fim de, se aproximando e se misturado com a
população camponesa local, tomarem o poder assim como havia feito sua
inspiração chinesa em 1949. Isso já em 1966, quando o governo sob a liderança
do Marechal Castelo Branco defendia o papel transitório que os militares teriam
até que se convocasse uma eleição e se (re)entregasse o poder sobre o país aos
civis.
Este é um detalhe importante, na medida em que justifica
duas opções do autor. Uma delas, explícita logo no título do primeiro capítulo
(“A Barbárie como Escolha”), insinua deliberadamente uma dubiedade acerca da
relação entre a guerrilha e o governo. Não está claro se a barbárie foi escolha
de um lado ou de outro, ziguezague que a obra apresenta no capítulo sobre a
guerrilha (“Breve História da Guerrilha”), no qual o autor destaca as campanhas
dos militares em nome do combate à guerrilha. Como em um paralelo com aquilo
que é comum nas avaliações sobre as fases do governo militar, o livro relata uma
primeira atuação do governo contra os guerrilheiros como sendo representante
daquilo que entendemos ser a “linha leve” da ditadura. Ou seja, a primeira campanha
teria sido feita pelos militares ainda de modo brando, sob o respeito das
regras da Convenção de Genebra e, portanto, ainda com a intenção de
averiguação.
Nesta fase, afirma o autor, coube aos guerrilheiros a
primazia dos ataques. Em 8 de maio de 1972 um cabo do Exército foi morto por um
tiro disparado pelos guerrilheiros. Ele teria sido a primeira vítima do
conflito. O corpo foi impedido de ser
retirado da mata pela liderança do Destacamento B, Osvaldão (o lobisomem do
título do livro), que, segundo o autor, mandou avisar que “o corpo do soldado
apodreceria por lá”.
A esta primeira fase da ação do Estado, marcada pela “vitória”
dos guerrilheiros, teria se seguido uma segunda, a Segunda Campanha, na qual a
ampliação da violência pelo Estado teria sido visível. Mais de três mil
oficiais militares chegaram ao Araguaia já em ambiente mais violento e também,
por ambas as partes, de aproximação e cooptação da população local.
Nesta segunda fase, a
ampliação do efetivo militar na região não alcançou resultados considerados
ruins pela guerrilha. Ao contrário, ela é seguida de uma trégua, como se as
forças do Estado aceitassem sua até então incapacidade de vencer a guerrilha. A
comemoração pelos guerrilheiros teria sido acompanhada do aumento da cooptação
de camponeses e pela radicalização da guerrilha. Eis o ponto da inflexão.
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Guerrilheiros mortos durante repressão à Guerrilha do Araguaia (Foto: Wikimedia Commons)
A aproximação, tanto da guerrilha quanto dos militares, em relação aos camponeses já não era novidade, e obedecia a certos procedimentos. Do lado militar, a aproximação ocorria por um jogo de delação premiada ou por pura e simples compra de informações e apoio dos camponeses. O “hard power” dos militares e do Estado brasileiro ditava as regras e as práticas. Já do lado da guerrilha, a aproximação com os camponeses seguia a linha “soft power”, na qual a narrativa, o convencimento pelo discurso, a aceitação cultural e a própria convivência entre guerrilheiros e camponeses garantia a criação de um espaço favorável às simpatias mútuas.
Neste caso, a criação e alimentação da mitologia sobre a borboleta e o lobisomem, que dão título ao livro, ganham sentido. A guerrilheira Dina – Dinalva Conceição Teixeira –, a borboleta, era uma das lideranças da guerrilha e simbolizava a transformação e a esperança. Já Osvaldão – Osvaldo Orlando da Costa -, o lobisomem, a força. Ambos, aquém de suas lideranças no imaginário tanto popular quanto da guerrilha, estiveram envolvidos com o ponto de inflexão do conflito. Em novembro de 1973, naquela conhecida como a Terceira Campanha, o guerrilheiro Ari, codinome de Arildo Valadão, foi morto e degolado por camponeses cooptados pelo Exército. Ambos, Dina e Osvaldão, estavam entre aqueles que encontraram o corpo de Ari na mata. Foi a morte de Ari e seu degolamento, a mando do major José Brant Teixeira, que iniciou o abandono da “lei de Guerra” e a adoção da “lei da Selva”. A reação de Osvaldão foi escolher o “mundo”, não a “vida”, e continuar a frente da guerrilha até ser, ele mesmo, morto pelo Estado brasileiro. Dina não teve outra sorte: executada em junho de 1974, foi uma das últimas da guerrilha a morrer.
O debate historiográfico, então, ganha ares morais: terá sentido relativizar a morte de Ari, fora das “leis de Guerra”, como sendo parte de uma guerra entre o Estado Brasileiro e a Guerrilha? Ou, ao contrário, a “quebra” da lei esteve mais gravemente do lado do Estado, que na terceira Campanha abandonou sua anterior posição de representante legal e assumiu a “lei da Selva”?
A brutalidade da ação militar, evidentemente, não se justifica. Contudo, o modo como Studart constrói sua tese levanta a suspeita. É mais contundente quando identifica a estrutura militarizada e de treinamento da guerrilha. Nesse caso, aponta para uma definição do campo de enfrentamento entre grupos que, não obstante a diferença de escala (uma guerrilha com menos de uma centena de participantes e o Exército nacional), eram estruturados pelo mesmo código de honra característico de organizações militares. Assim, seria uma briga entre iguais. É menos contundente, diria que por ultrapassar alguns limites, quando busca nas regras de comportamento amoroso e sexual (capítulo 13: “Amor e Sexo em Tempos de Guerra”) sinais que justifiquem a definição do enfrentamento entre o Estado e a guerrilha como uma guerra entre iguais.
O mérito do trabalho de Studart está nas partes em que tenta humanizar os atores, desfocando o tradicional debate que insiste em enxergar o conflito como sendo exclusivamente entre dois grupos. Um capítulo e três apêndices são, neste sentido, esclarecedores: capítulo 18 – “Ao Encontro do Porvir” – e apêndices II, III e IV – “Guerrilheiros Mortos e Desaparecidos”; “Os Camponeses na Guerrilha”; e “Militares no Araguaia”.
Esta talvez seja sua polêmica central: é possível entender o conflito a partir de seus atores individuais e não dos grupos que representavam? O risco, ao assim fazer, é colocar todos os participantes na mesma linha de partida, guerrilheiros e militares. Risco que o autor assume com segurança. Mas que tornam compreensíveis as críticas que recebe pela divisão que faz das responsabilidades entre guerrilheiros (e o PC do B, como confirma o posfácio escrito pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida) e o Estado brasileiro por meio de seu Exército.
Ainda mais depois das recentes descobertas de documentos que atestam que mesmo no período Geisel (o presidente da “abertura”), as execuções patrocinadas pelo Estado brasileiro não só continuaram, como também estavam sob as ordens e consciência do presidente. Entre a guerrilha e Exército, o ponto de partida não era o mesmo. A aceitação ou não da relativização feita por Studart fica a cargo dos leitores.
(*) Vinicius Müller é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo e professor do Insper-SP.