Não foi apenas a insegurança que colocou em xeque o país irmão do Equador. Este componente é apenas a ponta do iceberg que a crise estrutural de uma sociedade dizimada tem pela tendência corrupta do neoliberalismo que ocorreu durante o Correísmo. O excesso de problemas econômicos, sociais e políticos que o partido no poder tenta encobrir ao “declarar guerra aos terroristas” (gangues criminosas e organizações criminosas) é a estratégia desgastada de regimes políticos que apelam à violência para garantir a sua própria sobrevivência.
As relações entre o Peru e o Equador, desde a sua independência, foram marcadas por uma complicada trama econômica, social e política que se reduziu a uma questão de delimitação de mais de 1500 km de fronteira comum. Sem negar a existência deste problema, o que o Equador enfrenta hoje mostra que a história envolve o tecido social de ambos os países. A “crise de insegurança” que abala as estruturas da sociedade equatoriana, sem dúvida, impacta o Peru como nação e não apenas nas suas fronteiras.
Os primeiros registros formais desse processo de conflito aparecem em 1910, quando, com a mediação da Argentina, do Brasil e dos Estados Unidos, ambos os países decidiram recorrer à Corte Permanente de Arbitragem Internacional, em Haia. Depois, mostrando que os problemas não estavam resolvidos, em 1936 decidiram recorrer ao Tribunal Permanente de Justiça Internacional. Nenhum destes esforços conseguiu evitar o conflito bélico de 1941, que deixou uma ferida profunda entre os dois países, apesar de o Protocolo do Rio de Janeiro de 1942 ter estabelecido “definitivamente” os seus limites territoriais, o que, infelizmente, o Equador nunca admitiu plenamente.
Em 1998, sob os presidentes Fujimori (Peru) e Mahuad (Equador), após uma série de escaramuças entre cidadãos e policiais de ambos os países nos anos anteriores, assinaram o Protocolo de Paz, Amizade e Limites do Rio de Janeiro, com a esperança de de pôr fim àquela relação conflituosa que parecia ter apenas conteúdo fronteiriço. O acordo, porém, além de estabelecer bases técnicas para a questão das delimitações pendentes, redefiniu as relações entre os dois países, tornando-os “parceiros estratégicos” na promoção do desenvolvimento binacional.
Mais uma vez, porém, o reducionismo prevaleceu no conteúdo e no âmbito do Acordo de Paz. Perdeu-se a oportunidade, mais uma vez, de ver a profundidade dos problemas de ambos os países que, tendo as suas zonas fronteiriças como espaço privilegiado de operações, foram vítimas de gangues criminosas e de traficantes de drogas e armas que faziam o seu trabalho. Este controle territorial e institucional do crime organizado remonta à década de 80 do século passado. A “delimitação fronteiriça” tornou-se, dada a conveniente cegueira de ambos os governos, um álibi que escondia problemas de tal magnitude que transcendiam a zona fronteiriça. Entre eles:
- Tráfico de drogas. Numa fronteira tão silvestre e extensa como a peruana-equatoriana, a existência de mais de 80 travessias ilegais (2023) não deveria ser uma surpresa. O que deveria surpreender é a falta de eficácia (ou permissividade) da interdição por parte dos governos dos dois países. Esta “ineficiência” é muito mais estranha quando se trata do conhecimento público da presença de gangues que, desde as “embaixadas” do Cartel de Sinaloa nos dois países, passando pelos “Choneros” e “Tiguerones” (traficantes de drogas), até os Tren de Aragua (uma gangue criminosa venezuelana com alcance internacional) e outras gangues operam impunemente em ambos os países. As principais culturas que estas máfias incentivam são a coca, a papoila e a marijuana cujo destino, depois de processados, são os EUA e a Europa.
- Mineração ilegal. Problema antigo que envolve os dois países. Tão lucrativos quanto as drogas, cujos operadores dariam literalmente a vida. A sua exploração concentra-se principalmente nos rios transfronteiriços que sustentam a biodiversidade da área, embora existam também sumidouros com impactos nocivos semelhantes. A mineração ilegal e informal de ouro é uma atividade muito atrativa devido aos seus preços em constante aumento no mercado internacional. Isto continuará enquanto não tiverem alternativas de emprego. As vítimas, como sempre, são as populações nativas da Cordilheira do Condor e do Cenepa, onde vivem os Wampis e os Aguajum, dos dois lados da fronteira. O processo de exploração e comercialização de ouro ilegal tem ligações com o tráfico de drogas, trabalho infantil, tráfico de seres humanos, assassinatos por encomenda, etc.
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A crise de insegurança que abala a sociedade equatoriana impacta o Peru como nação e não apenas nas suas fronteiras
- Tráfico de armas. Embora a apreensão do meio de comunicação equatoriano tenha servido para tornar visíveis as armas e munições peruanas nas mãos de criminosos e traficantes de drogas, não devemos perder de vista que este também é um problema antigo. Está comprovado que as munições e armas que chegam ilegalmente ao Equador são utilizadas por organizações criminosas dedicadas ao tráfico de drogas, ao tráfico de pessoas e à proteção do ouro ilegal, etc. Relatórios recentes revelam que 52% de todos os explosivos apreendidos no Equador (2023) vêm do Peru e levam o selo da Fábrica de Armas e Munições do Exército Peruano (FAME). São conhecidas três rotas desse tráfego: a primeira sai de Águas Verdes (Peru) com destino às fazendas do lado equatoriano, a segunda sai de Tumbes com destino à Colômbia e a terceira inclui Quito, Ibarra e Tulcán. É mais angustiante saber que o tráfico de armas é facilitado pelas próprias organizações criminosas.
- Extração ilegal de espécies de alto valor comercial em esferas binacional e internacional. A exploração madeireira ilegal é um problema compartilhado por ambos os países. O Peru dispõe e o Equador comercializa diversas espécies em bruto com o valor agregado. No entanto, diferentemente, a “Topa”, o Balsa, nas quais os proprietários são as comunidades nativas de ambos os países, estes se veem obrigados a “negociar” em condições desvantajosas com os traficantes de madeira. Este processo não só gerou conflitos intercomunitários, mas desencadeou uma perda devastadora de espécies que nascem e crescem junto ao Topa. O abate ilegal de árvores é um dos maiores problemas ambientais em ambos os países. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MAE-Equador), entre 1990 e 2018 o Equador perdeu cerca de dois milhões de hectares de florestas naturais.
- Migração ilegal. Há poucos dias, as autoridades nacionais do Peru e do Equador, numa dessas bombásticas operações “binacionais”, informaram os seus países dizendo que, diariamente, 2.000 pessoas atravessavam ilegalmente a linha da fronteira. Anualmente, teríamos mais de 720 mil pessoas cruzando ilegalmente a fronteira em uma viagem de ida e volta. Entre eles, sem dúvida, traficantes de drogas, contrabandistas e migrantes ilegais passam confortavelmente, servindo de cobertura para crimes execráveis como o tráfico de crianças para exploração sexual, trabalho infantil, entre outros.
- Interferência norte-americana nos assuntos internos. Como já se sabe, tanto o Peru como o Equador estão recebendo entusiástica “colaboração técnica e militar” dos EUA para combater o “terrorismo” em ambos os países. Lembremos que Correa expulsou a base naval norte-americana de Manta e também cancelou a assistência técnica que recebia da polícia equatoriana. Agora eles voltam com a aprovação de Noboa. No Peru, após o golpe contra P. Castillo, as ações de cooperação militar “contra os insurgentes” foram reativadas. As embaixadas de ambos os países não deixaram dúvidas sobre esta política intervencionista. A “defesa da democracia” e a sua “segurança nacional” são razões suficientes para a presença norte-americana na América Latina. A verdade é que estamos perante uma disputa geopolítica pelo território do grande país, onde os EUA levam a pior.
Não é necessária nenhuma demonstração para afirmar que estes problemas transcendem o espaço fronteiriço regional. Eles impactam as estruturas econômicas, sociais e políticas de ambos os países. Estamos, como dissemos em notas anteriores, assistindo ao desenvolvimento do germe que poderá desencadear situações de conflito bélico localizado na fronteira ou alargado ao nível nacional. A presença de falcões em solos peruano-equatorianos não é uma coincidência.
O neoliberalismo que se instalou em ambos os países (há três décadas no Peru e uma no Equador) contribuiu decisivamente para criar as condições para explosões sociais e políticas, além do crescimento explosivo da criminalidade comum, do tráfico de drogas e de armas, etc. Portanto, ambos os países têm raízes comuns nos seus problemas, especialmente aqueles relacionados com a pobreza extrema, o desemprego e a rendição dos seus governos. As suas soluções poderiam ser melhor canalizadas para uma perspectiva de ação conjunta.
Provavelmente, em ambos os países, estão sendo alcançados extremos em que o povo, soberano e repositório do poder, se manifeste e aja no exercício legítimo dos seus poderes, mais cedo ou mais tarde. Não basta declarar “guerra” ou “estado de emergência” na presença de “terroristas” fantasmagóricos. Essa fórmula falhou sempre que governos conservadores a utilizaram.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Rocio Paik.