O mundo sabe há algum tempo que os serviços de segurança canadenses estão envolvidos em espionagem industrial contra o Brasil. É sem dúvida o caso de outros países. Para o governo Harper, essas práticas se encaixam bem com sua visão do mundo.
Uma política externa marcada pela “guerra sem fim”
Stephen Harper foi eleito em 2007, previamente à sua denúncia feroz da “neutralidade” do governo canadense durante a invasão do Iraque pelos EUA (que o Canadá, como a grande maioria dos Estados membros da ONU, recusou-se a endossar). Harper não queria apenas que o Canadá participasse dessa ação ilegal, mas também que reorientasse a sua política externa com base nos objetivos dos neoconservadores norte-americanos, incluindo iniciar guerras “preventivas” e a enfrentar não só a ameaça terrorista como também a emergência de novas potências.
Em 2011, após a eleição que lhe permitiu formar um governo majoritário, Harper definiu suas prioridades para o setor de segurança militar através de aumentos substanciais nos orçamentos (enquanto todos os outros ministérios e departamentos do governo federal foram atingidos por grandes reduções). Além disso, as Forças Armadas do Canadá, que tradicionalmente participaram de missões das forças de paz da ONU, foram redirecionados para uma missão de combate na região sul do Afeganistão, na linha de frente, por assim dizer. Ao mesmo tempo, o Canadá é exibido na ONU como o principal aliado de Israel, recusando-se a endossar as condenações regulares contra a expansão dos assentamentos e as graves violações dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados. Tudo isso levou, em 2010, à humilhante derrota da candidatura do Canadá para o Conselho de Segurança, quando tradicionalmente o país sempre foi eleito para o órgão de decisão da ONU. Desde então, o governo canadense tem apoiado as ações militares da OTAN, como foi o caso na Líbia, em 2012. Ele intensifica sanções contra o Irã e denuncia todos aqueles que querem negociar com o regime iraniano, que qualifica de “maléfico”.
A América Latina não é exceção a essa virada neoconservadora canadense. Ottawa foi um dos primeiros (e raros) Estados a apoiar o golpe de Estado em Honduras, bem como a derrubada do presidente do Paraguai. O “inimigo” declarado de Harper é a Venezuela, que ele denuncia nos mesmos termos que a direita republicana nos Estados Unidos. Na verdade, a política externa do Canadá no momento é mais parecida com a do Tea Party do que com a do governo Obama.
Office of the Prime Minister
Stephen Harper: virada neoconservadora no Canadá
NULL
NULL
O reino da petro-energia
O realinhamento do Canadá sob Harper não é apenas no domínio da política externa. Com efeito, a nova prioridade é concentrar intervenções para fortalecer o setor petroleiro no oeste do país (em Alberta, notadamente) e, de maneira geral, nos recursos naturais. Esta “reprimarização” da economia ocorre em detrimento de setores industriais, tradicionalmente localizados em Ontário e Quebec. Atualmente, o grande desafio para o governo federal é a construção de uma poderosa rede de dutos para o sul (mercado dos EUA), para o oeste (mercado asiático) e para o leste (Atlântico) para transportar o petróleo da Província de Alberta, descrito por ambientalistas como o “mais sujo” do mundo (sozinhos, os campos de petróleo betuminoso são responsáveis por um grande percentual de emissões de gases de efeito estufa). Atualmente, o governo Harper é apoiado por menos de 30% dos canadenses (40% dos 60% que votam), principalmente nas províncias ocidentais. No Quebec, o Partido Conservador tem apenas cinco deputados, em face de cerca de 60 social-democratas eleitos pelo NDP. O país está fraturado geograficamente e politicamente.
Segurança acima de tudo
Last but not least, o governo está fortalecendo o setor de segurança, incluindo a Royal Canadian Mounted Police (Polícia Federal), o Serviço Canadense de Inteligência de Segurança (SCRS), e o Centro de Segurança das Telecomunicações do (CSEC), identificado como a agência responsável por interceptar mensagens provenientes de ministérios brasileiros. Estas agências trabalham em estreita colaboração com várias agências de segurança dos EUA, incluindo o grupo TAO, o nome de código de uma unidade de elite da espionagem americana. Essas práticas ilegítimas se somam às políticas discriminatórias e contrárias à Carta dos Direitos, como a detenção “administrativa” (sem processo, nem acusação), e a imposição a indivíduos “suspeitos” de ligação com grupos “subversivos” de “certificados de segurança” que obrigam severas restrições. O governo sustenta ativamente uma campanha de medo, apresentando o Canadá como “alvo” de “terroristas” formados, na maioria, por grupos árabes e muçulmanos. Qualquer organização crítica das políticas de Israel é ameaçada de ser colocada em uma lista de “grupos terroristas”, realizada pelo governo canadense, com graves consequências para a liberdade de expressão.
Futuro incerto
Recentemente, na Cúpula da APEC, o primeiro-ministro Harper retomou seus temas preferidos: livre comércio sem restrições, promoção dos “valores” da “democracia” na interpretação dos EUA do termo, denúncia dos “Estados terroristas” etc. Nas entrelinhas, também defendeu uma política para impor uma nova Pax Americana na região da Ásia-Pacífico. O sonho é um pouco fútil e perigoso, mas pode levar à políticas desestabilizadoras. Apesar das relações comerciais significativas entre Canadá e China, o governo Harper não hesitará em intervir nos assuntos internos desse país, supostamente para defender os direitos humanos. Ele é bem mais hostil ao crescimento das empresas chinesas no Canadá, inclusive no setor energético, apesar de querer vender mais petróleo para a China! Em face das próximas eleições federais previstas para 2015, a opinião pública canadense está inquieta, tanto com as questões de política interna quanto de política externa. Resta saber o que poderão fazer os partidos de centro e centro-esquerda que estão atualmente na oposição, mas que parecem receber o apoio da maioria da população. Questiona-se notadamente o fato que o Brasil foi negligenciado pelo governo Harper, que em sua miopia e dogmatismo o vê mais como um adversário do que como um parceiro.
Pierre Beaudet é professor da Escola de Desenvolvimento Internacional e Estudos Globais da Universidade de Ottawa
Tradução: José Renato Vieira Martins