O disco é de 2010, mas a primeira sensação que provoca é de uma viagem ao passado. Desde o título simbólico e sonoro, Olympia captura a lembrança da banda de origem de seu autor, o cantor e compositor inglês Bryan Ferry. Do mesmo modo, a capa evoca de perto o disco de estreia do Roxy Music, que veio à luz em 1972 e ajudou a delinear o rock’n’roll num mundo que já não contava com a liderança dos Beatles, da psicodelia ou do “flower power”.
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Em Olympia, Bryan Ferry mescla o glamour do Roxy Music com a novidade das composições inéditas
Na capa de Olympia, o observador encontra os olhos de uma mulher glamurosa, de lábios ostensivamente pintados, que o fita de ponta-cabeça. Estamos de volta aos domínios do Roxy Music, que inseriu moda, luxo e luxúria no ambiente quase sempre macho e não raro abrutalhado do rock do início da década de 1970. Secundado de início por um andrógino (e musicalmente explosivo) Brian Eno, Ferry participou de modo indireto do levante do chamado glam rock, liderado naquele mesmo 1972 pelo conterrâneo David Bowie.
Chegou a aderir ao glitter, aos brilhos e à maquiagem pesada, mas a sedução visual ele preferia confiar às lindas mulheres que colocava nas capas dos álbuns. Elas estavam sempre lá, deitadas como a modelo de camisola em Roxy Music (1972) ou a tigresa de Stranded (1973), ou eratas como a femme fatale de For Your Pleasure… (1973), as selvagens de calcinha na floresta de Country Life (1974) ou as amazonas de Flesh + Blood (1980).
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Sem lançar composições próprias desde 2002, Ferry volta a apresentá-las agora, disposto a ressuscitar muito daquele primeiro espírito Roxy, seja pela capa ornada pela mulher-objeto, seja pela própria sonoridade toda perpassada de climas tensos, misteriosos, melancólicos – e sofisticados. O contexto, no entanto, não poderia ser mais divergente daquele de 38 anos atrás.
Ferry, aos 65 anos, é um pai de quatro filhos que manifesta-se em favor do hedonismo e da dança (seguindo uma norma Roxy, a faixa de abertura chama-se You Can Dance), mas não teme se declarar simpatizante do Partido Conservador britânico nem se travestir como o último dos românticos contumazes, daqueles que parecem extrair mórbido prazer do ato de sofrer.
A maioria das faixas fala de amores infelizes, em versos esvaziados em comparação com o cortante simbolismo dos tempos Roxy. “Por que você sofre?”, pergunta à amada em Alphaville, balada valorizada pelos sintetizadores de Eno (além dele, os ex-Roxy Phil Manzanera e Andy Mackay marcam presença no CD). “Não posso prosseguir/ agora que você se foi”, banaliza-se em Me Oh My. Nesse compasso segue a maioria dos versos de Olympia.
O apreço pelas palavras que escondem imagens que ocultam símbolos ressurge aqui e ali, notadamente em Song to the Siren – não é coincidência que seja uma antiguidade composta em 1967 do trovador folk Tim Buckley. A canção evoca imediatamente a capa do clássico Siren (1975), na qual uma sereia se arrastava lânguida nas escarpas de uma praia. A modelo era sua namorada à época, Jerry Hall, que o deixaria em 1977 para ficar com Mick Jagger. Antiquada para este século, a letra de Buckley rogava à sereia que não o tocasse – e fazia um paralelo entre ela e a morte, que tratava como “minha noiva”. Mesmo para um roqueiro ocasionalmente coberto de purpurina, a vida é obra de macho, enquanto a morte pertence ao sexo feminino.
Se nos temas próprios o Ferry de 2010 tende ao banal, em canções de outros como essa Song to the Siren ele resulta especialmente confessional, apelando ao ideário romântico autoindulgente de tratar o par amoroso menos como objeto de amor que como… o inimigo.
Resvala por aí também a maravilhosa versão para No Face, No Name, No Number (também de 1967), recolhida do repertório da banda Traffic, na qual o narrador romantiza a busca por “uma garota que não tem nome, rosto ou número”. Portadora de olhos oblíquos e dissimulados, a sereia não canta por amor , mas sim para enganar, atraiçoar e arrasar suas “pobres” presas.
Ainda que hoje eleja imagens de tez tão conservadora, o artista mantém o toque de midas às canções que resolve retrabalhar. O Ferry intérprete tem sido o Ferry mais afiado, desde os tempos muito autorais do Roxy Music. Ainda em 1973, com o grupo vibrando a pleno vapor (Eno saiu em 1974, mas o Roxy só iria acabar em 1982), passou a gravar discos solo paralelos quase sempre dedicados a reinterpretar cancioneiro norte-americano e inglês.
Tais álbuns formam um “songbook” impressionante, forrado de releituras inspiradas de repertório tão diversificado como os de Elvis Presley, Bob Dylan, Aretha Franklin, Sam Cooke, Carole King, Lou Reed, Platters, Everly Brothers, Beatles, Beach Boys, Rolling Stones, Isaac Hayes, Stevie Wonder, Willie Nelson, Al Green, Ike Turner, Kris Kristofferson… Soul, rock, blues, folk e country são as matérias-primas construtoras de uma identidade próprio que sempre buscou ser, acima de tudo, pop – e autoral.
Provam-no as versões pastosas que cria agora para Whatever Gets You Thru the Night (1974), da fase solo de John Lennon, e One Night, gravada em 1958 por Elvis. Parecem mais Ferry que Lennon ou Presley. Desleixado, a edição brasileira deixa no encarte a referência às duas faixas, mas elas não estão no CD. São faixas-bônus lançadas lá fora, e excluídas da edição nacional, mas não do texto de apresentação.
Em vez dessas, há duas parcerias inéditas com artistas de grupos mais contemporâneos, o etéreo Groove Armada (Shameless) e o debochado Scissor Sisters (Heartache by Numbers). À parte as interferências dos pares mais jovens, as faixas parecem mais Bryan Ferry, digamos, clássico – e autoral. E não fazem sombra aos momentos em que o herói abatido assume de peito aberto o túnel do tempo, como Alphaville e No Face, No Name, No Number. A sereia segue cantando e seduzindo, mas ela não é uma mulher.
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