A seguir, o prefácio escrito pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, para o livro recém-lançado “Ditadura, a cumplicidade da Volkswagen e a resistência dos trabalhadores”, da fundação Heinrich Plagge.
O livro da Associação Heinrich Plagge (AHP) nos convida a uma viagem ao passado, mais especificamente ao período da ditadura militar. Em certa medida, a história dos horrores e do arbítrio daqueles 21 anos já foi retratada em várias obras. Mas o que torna esta especial é o fato de nos oferecer uma dimensão consistente e verdadeira do que aconteceu com os trabalhadores na época, mais especificamente os da Volkswagen do Brasil. Mostra – também de forma aprofundada – a colaboração ativa da filial da montadora alemã com regime implantado após o golpe civil-militar de 1964. E, de maneira inédita, tudo isso é relatado sob a perspectiva de quem sofreu na pele, em seu ambiente de trabalho, as consequências dos métodos empregados pelos órgãos de repressão do regime para tentar calar a voz ao menor sinal de discordância.
Particularmente, com este livro relembrei a perseguição sofrida por vários trabalhadores que conheci na fábrica – cujos relatos estão registrados aqui – e as dificuldades enfrentadas depois de demitidos, por terem seus nomes adicionados às “listas sujas” preparadas pela Volks e enviadas a outras empresas e a departamentos de polícia. Fui testemunha de inúmeros casos enquanto metalúrgico na Volks, onde fui admitido em julho de 1978, dois meses depois da deflagração da greve na Scania – que foi o estopim para que, a partir do ano seguinte, os metalúrgicos do ABC mudassem os rumos do sindicalismo brasileiro e fossem decisivos para a retomada da democracia em nosso país em 1985.
No meu caso específico, só não fui um dos dispensados naqueles anos das grandes greves por ter sido escolhido pelos companheiros de fábrica para mandatos como cipeiro e, a partir de 1984, como diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o qual tive a honra de presidir entre 1996 e 2003 e de viver, em 2001, uma grande vitória, quando, pela primeira vez na história de nossa categoria, um dirigente sindical brasileiro se reuniu com a direção mundial da montadora para reverter a decisão da filial em demitir 3.000 trabalhadores. Saí de lá com o acordo feito.
Esse resultado só foi possível graças à determinação dos metalúrgicos na Volkswagen, demonstrada na época e que, com certeza, teve como exemplo as lutas empreendidas para romper as difíceis barreiras da repressão nos anos da ditadura, como o episódio da prisão e da tortura de trabalhadores dentro da fábrica, em 1972, por agentes dos órgãos do governo com a conivência da empresa, narradas em detalhes aqui.
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(Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)
Este é outro mérito desta obra: revelar a intensa colaboração da Volkswagen com a ditadura militar e os métodos por ela utilizados para reprimir e tentar impedir os trabalhadores de reivindicarem melhores salários e condições de trabalho, trazendo inúmeros exemplos de um esquema que reproduzia no chão de fábrica os mesmos métodos utilizados pelos órgãos de segurança para manter o controle social. Ao longo da obra, os leitores verão que, em um ambiente hierarquizado e autoritário, os seguranças da empresa circulavam ostensivamente pelas seções – em esquema que contava ainda com policiais disfarçados de operários – e que o departamento de segurança industrial, majoritariamente composto por pessoas oriundas das Forças Armadas, replicava o ambiente e os procedimentos de uma delegacia de polícia, inclusive com elaboração de “boletins de ocorrência” que eram enviados posteriormente aos órgãos de segurança do Estado.
Em suma, o livro apresenta a real história vivida pelos trabalhadores desde a instalação da montadora no Brasil em 1953 – respaldado em entrevistas e pesquisas realizadas pelos jornalistas Gonzaga do Monte e Solange do Espírito Santo e levantamento documental feito pela pesquisadora Rosana Gonçalves –, e deixa registrado todo o percurso percorrido para que, de maneira inédita, um agente privado (neste caso, a Volkswagen) fosse objeto de inquérito civil e responsabilizado por suas ações repressivas e colaboracionistas com os militares, a partir de denúncia do Fórum dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Verdade, Justiça e Reparação. Graças à luta dos trabalhadores vitimados e da disposição demonstrada por procuradores, com a decisiva colaboração do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e do Comitê Mundial de Trabalhadores na montadora, a Volkswagen assinou, em 2021, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os Ministérios Públicos Federal, do Estado de São Paulo e do Trabalho e com a AHP, reconhecendo as violações cometidas na ditadura.
Por fim, aproveito para parabenizar a Associação Heinrich Plagge e todos os envolvidos por sua inestimável contribuição para que o direito à verdade, à memória, à justiça e à reparação seja efetivamente cumprido em nosso país e seja também um exemplo de resistência a todo sistema autoritário e da reafirmação do estado democrático em sua plenitude.
Boa leitura!
(*) Luiz Marinho é ministro do Trabalho e Emprego do Brasil. Foi deputado federal, ex-presidente do PT-SP e ex-prefeito de São Bernardo do Campo.