Quando se propõe a avaliar uma produção cultural que tem conotação política é quase impossível separar o ator, a obra e seu contexto. Claro que as qualidades técnicas (roteiro, direção, trilha sonora, etc.) e estéticas da obra contam bastante para passar o recado ao público. Como disse o diretor Jonathan Glazer, há o filme que é visto e o filme que é ouvido.
O filme em questão, dirigido por Glazer, “Zona de Interesse” – baseado no romance homônimo de Martin Amis –, acompanha a vida familiar de Rudolph Höss, o comandante nazista do campo de concentração de Auschwitz, em uma casa adjacente ao campo.
Quando o filme estreou, no ano passado, antes do ataque do Hamas no dia 7 de outubro, poderia ser visto como uma experiência contemplada com um certo distanciamento intelectual e temporal. O seleto público do festival de Cannes o aplaudiu de pé durante seis minutos. Será que o avaliariam da mesma forma nesse momento?
A história se passa num ambiente idílico, uma casa bastante espaçosa à beira de um riacho, com jardins e hortas onde vivem Höss, sua mulher, filhos e empregados poloneses. Não há nenhuma cena de violência explícita. Mas, enquanto vemos a mulher de Rudolph, Hedwig, com sua filha cheirando flores e as crianças brincando na piscina, aparecem as fumaças ao fundo, saídas dos crematórios, alguns tiros esparsos, gemidos e gritos.
Tudo muito distante, com realidades e mundos completamente distintos, separados apenas por um muro; mas, ao mesmo tempo, tudo muito próximo e, mais do que isso, mundos que estão conectados, um cenário em que o conforto burguês da família do comandante vive às custas dessas atrocidades.
Numa das cenas iniciais do filme, um pacote cheio de roupas e de lingeries roubadas dos prisioneiros do campo chega à casa dos Höss. A mulher do comandante, Hedwig, distribui aquilo que é de menor valor aos criados, enquanto fica com um casaco de pele. As cenas dos filhos pesquisando dentes de pessoas cremadas é capaz de causar arrepios.
Essa situação de proximidade e distanciamento, de racismo, exploração e genocidio, foi imediatamente associada, por muitos, à situação em que vivem os palestinos em Gaza. Além disso, como não associar as cenas do filme aos soldados israelenses que se filmam invadindo as casas dos palestinos, roubando sapatos e jóias para as suas noivas e namoradas, ou às selfies mostrando os escombros de Gaza como pano de fundo?
Desde 2007, os habitantes de Gaza vivem de forma miserável, com restrição de alimentos, remédios e água. A poucos quilômetros dali estão os israelenses, que desfrutam sua vida de maneira confortável em cidades e comunidades onde viviam 75% dos moradores de Gaza antes de serem expulsos. A vida em Gaza piorou, consideravelmente, após os massacres contra militares e civis realizados pelo Hamas, a partir do momento em que o Estado de Israel colocou em marcha um processo violento de punição coletiva em que se configura claramente a situação de genocídio.
Glazer, que cresceu na comunidade judaica em Londres e passou um tempo em um kibutz israelense em sua juventude, faz questão de dizer que seu filme não é sobre o horror do Holocausto, mas sobre a capacidade humana de conviver com atrocidades e retirar benefícios delas. Em seu discurso, após receber o prêmio de Melhor Filme Internacional no Oscar, Glazer foi coerente com a proposta de seu filme. Seu objetivo não é ficar no passado, mas servir dele para confrontar o presente. Bastou criticar o uso indevido que se faz do holocausto por alguns e relacionar a tragédia em Gaza à Ocupação para que fosse duramente criticado pelos apoiadores do Estado de Israel.
Para além do discurso, fica a obra de arte, que deixa algumas perguntas incômodas e desafiadoras que ultrapassam o momento histórico do nazismo e que poderiam ser repetidas ali para o público que assistia à cerimônia do Oscar. Como as pessoas podem levar uma vida normal enquanto ocorre um genocidio? As pessoas desconhecem o que acontece, justificam o que acontece ou simplesmente fingem não saber o que acontece? O Holocausto deve ser visto exclusivamente como uma catástrofe judaica ou como algo mais universal? É possivel inserir o Holocausto na mesma dimensão que os genocídios coloniais? Não se pode comparar os números de mortos num e noutro caso, nem a natureza política que propicia os massacres; mas é inegável que há elementos comuns entre eles: o racismo, a fome como arma de extermínio, a pilhagem, a desumanização e a morte indiscriminada de mulheres e crianças.
Em torno da figura de Rudolph Höss, um dos mais “eficientes” comandantes de todos os campos de concentração do nazismo, responsável pela morte de milhões de pessoas, Glazer mostra a figura de um pai amoroso, “trabalhador” e extremamente dedicado à família. Como disse Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal” a respeito de outro carrasco nazista, “o problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” .
Todavia, o filme de Glazer não deixa de mencionar que sempre há resistência e solidariedade, mesmo em situações desesperadoras como essa. Quase ninguém prestou atenção no fato de que Glazer dedicou o prêmio a Aleksandra Bystroń-Kołodziejczyk, mulher polaca que alimentou secretamente os prisioneiros de Auschwitz e lutou contra os nazistas como membro do exército clandestino polaco. No filme, ela aparece como se fosse um conto infantil, o único ponto de luz no meio das trevas, observou Glazer.
Talvez seja por isso que a organização Voz Judaica pela Paz tenha afirmado que “Glazer fala em nome de um número crescente de judeus que honram a nossa história, juntando-se aos nossos irmãos palestinos na sua luta pela liberdade e pela justiça”.
(*) Reginaldo Nasser é professor livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC-SP, no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e autor do livro “A luta contra o terrorismo: os EUA e os amigos Talibãs”.