Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) foi um dos mais importantes intelectuais, sociólogos e ideólogos do nacionalismo brasileiro. Figura central no debate público e nas lutas políticas das décadas de 1950 e 1960, foi marginalizado no Brasil depois da ditadura empresarial-militar. Minha geração (eu nasci em 1990) não teve o contato adequado com a produção teórica e as concepções políticas da geração que viveu e produziu antes do golpe de 1964. A título de registro pessoal, lembro que na minha graduação em história e mestrado em serviço social da UFPE, os professores não exigiram a leitura de nenhum autor do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e quando nomes da tradição comunista como Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães surgiam em sala, logo eram taxados com rótulos fáceis como “stalinista”, “mecanicista”, “defensor do feudalismo no Brasil”, etc.
Buscando combater na minha formação pessoal esse lapso histórico e ajudar a superá-la no debate público, comecei um estudo sistemático de pensadoras e pensadores brasileiros do fim do século XIX até o golpe empresarial-militar de 1964. Buscarei dividir com vocês, em textos e vídeos, algumas reflexões, dúvidas, certezas e considerações à medida que avançam esses estudos. Nesse momento estou debruçado na obra de Alberto Guerreiro Ramos. Terminei a leitura do livro “Negro Sou: a questão étnico-racial e o Brasil: ensaios, artigos e outros textos (1949-1973)” (Editora Zahar, 2023), organizado pelo professor Muryatan S. Barbosa, uma coletânea que sintetiza as reflexões de Guerreiro Ramos sobre a questão racial no Brasil.
O livro, antes de tudo, serve como documento histórico. Registra como um dos pensadores mais importantes do país — um homem negro nascido na Bahia — pensava a questão racial ao seu tempo. Mas, além de documento histórico e informativo do percurso de produção sobre a questão racial no Brasil, temos vários elementos de atualidade nas reflexões de Guerreiro Ramos — atualidade nos acertos e também nos erros. Dividirei o debate em três ou quatro partes, o número exato saberemos ao final. Dito isso, vamos conversar sobre Guerreiro Ramos e as relações de raça no Brasil.
O primeiro escrito do livro “Negro Sou” é um texto de 1949 intitulado “O negro no Brasil e um exame de consciência”. A reflexão de Guerreiro Ramos se baseia em uma análise e elogio do TEN (Teatro Experimental do Negro), temática frequente por muitos anos nas suas reflexões sobre a questão racial. Buscando descrever o que é o TEN, ele afirma que a organização é “fruto de uma profunda compreensão das peculiaridades do problema negro no Brasil” (RAMOS, 2023, p. 44). Que compreensão é essa? Para o autor, a população negra entrou para vida republicana “econômica, cultural e psicologicamente despreparada”. Ao pormenorizar essa afirmação, diz que “economicamente, toda essa população [negra] constituía o grosso das classes de baixo poder aquisitivo. Culturalmente, ela se apresentava afetada quase totalmente de analfabetismo e psicologicamente tal população carecia dos estilos mentais adequados à vida civil superior” (RAMOS, 2023, p. 44).
Depois desse diagnóstico, apontando mais para o “despreparo” do negro que à dominação racista, Guerreiro fala dos quatro séculos de escravidão e suas consequências na “alma nacional”, estrutura de classes “rigidamente tecida” e da “dominação do branco e do brancoide”. Mas não desenvolve a reflexão pela chave analítica dos efeitos da dominação. Passa a falar do pouco tempo que separa a condição atual e o fim da escravidão (lembrando: o texto é de 1949) e as consequências de episódio tão recente para arrematar o argumento com uma reflexão sobre a abolição: “a condição jurídica de cidadão livre dada ao negro foi um avanço, sem dúvida. Mas um avanço puramente simbólico, abstrato. Socioculturalmente, aquela condição não se configurou; de um lado porque a estrutura de dominação da sociedade brasileira não se alterou; de outro lado porque a massa juridicamente liberta estava psicologicamente despreparada para assumir as funções de cidadania” (RAMOS, 2023, p. 45).
Novamente o raciocínio aponta para duas frentes: condições de despreparo da população negra para “vida civil superior” e manutenção da “estrutura de dominação da sociedade brasileira”, mas nos dois parágrafos seguintes a reflexão caminha apenas para um lado, apontando a necessidade de “instalar na sociedade brasileira mecanismos integrativos de capilaridade social capazes de dar função e posição adequada aos elementos da massa de cor se adestrarem nos estilos de nossas classes dominantes” (RAMOS, 2023, p. 45 — grifos nossos).
A palavra adestrar pode causar estranhamento para os padrões de hoje, mas era de uso corrente na época e não tem sentido negativo. O que deve chamar atenção é o objetivo apontado por Guerreiro: aprender padrões de comportamento social nos “estilos das classes dominantes”. Classes dominantes brancas, herdeiras da escravidão, acostumadas por quatro séculos ao mando oligárquico em ambiente sociopolítico de desumanização total das classes do trabalho. A propósito, não era parte dos “estilos das classes dominantes” o racismo e o sentimento de superioridade racial filo-europeu frente ao negro e ao “mestiço” brasileiro?
O autor não desenvolve a reflexão sobre a dominação e sublinha que o Teatro Experimental do Negro não é “técnica de orientação ideológica” e não pretende estimular a organização da população negra em um partido, dado que isto é, para o sociólogo, um incorreto diagnóstico dos “problemas do negro no Brasil” e uma incompreensão da própria “contigência histórica” da questão racial no país (RAMOS, 2023, p. 46). Buscando desenvolver o raciocínio deste argumento, afirma que “uma modificação substancial das condições de nossa gente de cor não depende de uma transformação política, simplesmente”; questiona se um partido negro no poder resolveria os problemas desse grupo social e afirma que tal hipótese representaria “retrocesso” ou “uma agressão”, afinal “o homem de cor, entendido como o homem-massa, não está habituado às funções de mando, as quais, como é sabido, supõem uma longa aprendizagem” (RAMOS, 2023, p. 46P).
Novamente, o autor não debate como os “hábitos de mando” no Brasil estão organicamente ligados à supremacia racial branca e ao processo de formação histórica do país a partir do escravismo-colonial. Guerreiro toca no tema da dominação, mas logo faz um recuo, negando a intenção de estudar o tema racial desde uma perspectiva do conflito e sua superação pela auto organização da população negra buscando a transformação das estruturas de poder. A intenção integrativa é o tempo todo destacada, como a citação de um longo trecho de Abdias do Nascimento, onde no final podemos ler: “o Teatro Experimental do Negro não é nem sociedade política, nem simplesmente associação artística, mas um experimento psicossociológico, tendo em vista adestrar gradativamente a gente negra nos estilos de comportamento da classe média e superior da sociedade brasielira” (RAMOS, 2023, p. 48 — grifos nossos).
Logo depois, desenvolve uma longa reflexão sobre o papel do “homem de cor” no Ocidente, reivindica um lugar de renovação da vitalidade do Ocidente para o negro, em caso de libertação dessa “reserva anímica” da população negra. Mas, novamente, destaca que não se está falando de elemento “explosivo”, mas sim como “força de revitalização, dentro do Ocidente” (RAMOS, 2023, p. 51). O TEN, nesse sentido, teria função de organização dessa reserva estratégica de vitalidade, com horizonte integracionista, negritando ser uma instituição única que “encarna esse espírito de conciliação” (RAMOS, 2023, p. 52).
A fuga do conflito é tão gritante que o sociólogo, ao destacar o papel da Grupoterapia do TEN, dá ênfase à função de combate ao ressentimento e situa nos ombros da própria população negra os casos de insucesso na dinâmica concorrencial capitalista, ao dizer que “em quase todo o homem de cor parece existir uma certa tendência a explicar os seus insucessos sociais, entre os brancos, em termos de preconceito racial, quando muitas vezes tais insucessos são resultados principalmente de sua despreparação cultural” (RAMOS, 2023, p. 53).
Por fim, conclui o escrito com uma nova condenação da chave analítica do conflito como norte de compreensão da questão racial e faz um apelo para as classes dominantes realizarem obra de união nacional:
“Não nos confundimos com aqueles que fazem indústria do ódio e do ressentimento. O integral sucesso de nossa iniciativa depende, entretanto, de que, como diria Alioune Diop, os poderosos despertem de sua indiferença e de seu egoísmo e reconheçam aquilo que o gênio e a vontade do TEN oferecem à sociedade brasileira de mais singularmente construtor.” (RAMOS, 2023, p. 56).
O escrito seguinte da coletânea, “Apresentação da grupoterapia” (1950) tematiza o aspecto teórico desta prática elaborada pelo TEN e sua função na liberação da espontaneidade. Esse texto não desenvolve as reflexões anteriores sobre a questão racial e o papel do TEN desde uma perspectiva política, tática e estratégica. O mesmo acontece com os dois escritos seguintes, a saber: “Teoria e prática do psicodrama” (1950) e “Teoria e prática do sociodrama” (1950), onde Guerreiro reflete sobre a função, fundamentação teórica e tecnicidade dos modos de atuação da sua grupoterapia.
O sociólogo baiano volta à dimensão propriamente política da questão racial no texto “Apresentação da negritude” de 1950. Nesse curtíssimo escrito se destaca como elemento chocante o grau de ojeriza ao confronto político como elemento da luta antirracista. Começa afirmando que “o Brasil deve assumir no mundo a liderança da política de democracia racial”, pois é o único país do mundo que pode ofertar uma “solução satisfatória do problema racial”. Na reflexão do autor, o Brasil já oferece aos homens de cor “praticamente todas as franquias” e o grande problema brasileiro na questão racial é treinar os “homens de cor”, via cultura e educação, para utilizar essas “franquias” (RAMOS, 2023, p. 82). Em seguida afirma que no Brasil qualquer movimento negro “de caráter agressivo e isolacionista” fere a tradição nacional (de democracia racial, friso) e “torna-se mero caso de polícia” (RAMOS, 2023, p. 82 — grifos nossos).
Em sequência elogia o TEN, colocando-o como um movimento vanguardista de elevação cultural e econômica dos negros, atuando no âmbito da “ideologia tradicional do Brasil com respeito às relações de raça” e que a negritude “não é um fermento de ódio. Não é um cisma. É uma subjetividade. Uma vivência” (RAMOS, 2023, p. 82). Neste ponto, antes de prosseguir, é preciso consultar a apresentação do professor Muryatan Barbosa. Ele explica, a partir da página 19, que o comentário sobre democracia racial no Brasil feito por Guerreiro Ramos era um comparativo frente aos regimes de apartheid e segregação racial vivenciados na África do Sul e Estados Unidos; que as referências a esse tipo de comparação era letra corrente na época (e acrescento: até os dias atuais) e indica o sentido tático e político dessa abordagem de Guerreiro Ramos; “pretendia-se formar um pacto social de elites (brancas e negras), que se tornasse um dos elementos centrais de um projeto nacional-popular visando elevar as condições de vida da população negra. Um projeto que foi definitivamente derrotado pelo Golpe Militar de 1964” (2023, p. 19-20).
O organizador do livro corretamente alerta que Guerreiro Ramos “sabia o que era realidade, o que era política e o que era blague nessa história de democracia racial”. O alerta serve para não tratar o sociólogo como um ingênuo que acreditava nesse mito. Como diz Muryatan S. Barbosa, “era uma questão de tática”. Perfeito. Mas uma questão de tática errada. Agora podemos passar a uma análise preliminar desses primeiros escritos.
Se é compreensível mobilizar o mito da democracia racial e de uma suposta tradição brasileira de convivência harmônica entre as raças para buscar conquistas para população negra, é totalmente injustificável a condenação primária, reducionista, sem argumentos e até a criminalização (“torna-se mero caso de polícia”) das correntes do movimento negro que não tinham a perspectiva do autor e do TEN. É totalmente possível imaginar Guerreiro Ramos mobilizando a mesma tática e leitura teórica sem esses arroubos contra a militância negra — nas palavras do autor — “agressiva e isolacionista”.
Essa condenação primária é um plus, um bônus, que remete a compreensões mais profundas do autor. Sintoma desse exagero, me parece, é que Guerreiro Ramos, nas reflexões posteriores e temporalmente próximas (veremos nos próximos textos desta coluna), abandona como elemento central de sua proposta tática para questão negra a retórica de defender e melhorar a nossa suposta democracia racial e a tradição de convivência harmônica entre raças. Não é improcedente imaginar que o autor percebeu a pouca efetividade desse caminho, em particular o apelo para que a classe dominante formasse um pacto entre “elites brancas e negras”. Guerreiro também deixa de lado o foco na ideia de um despreparo da população negra para viver as “franquias [democráticas]” e possibilidades abertas, e presta bem mais atenção nos mecanismos de barragem contra a população negra.
Embora nas reflexões posteriores uma noção particular de conflito surja como central na compreensão do problema racial brasileiro e apresente a necessidade de reformas “superestuturais” para superar o racismo — chegando até a reflexão sobre a patologia social do “branco” brasileiro —, o autor mantém como tendência permanente (algo já implícito nesses primeiros textos) a ideia de que não existe fundamento econômico — isto é, nas relações de produção — no racismo brasileiro, que o Estado brasileiro não é agente reprodutor ativo da divisão racial da sociedade e que não existe relação orgânica entre raça e classe no Brasil, sendo superada na época em que ser negro era igual a ser apenas trabalhador, incluindo essa população nas camadas médias, burguesia e grupos sociais privilegiados (militares, acadêmicos, lideranças político-partidárias, profissionais liberais, etc.).
Com todas as mudanças, persiste na abordagem de Guerreiro Ramos a ideia de que o racismo não é parte estruturante e genética do capitalismo brasileiro — desde as relações de produção, estruturas de poder e morfologia das classes. Nesse sentido, lembrando a clássica reflexão de Malcolm X, para o sociólogo, existia, sim, capitalismo sem racismo. O racismo no Brasil não demandava uma solução revolucionária — quando falo em revolucionária, não estou apelando necessariamente para o adjetivo “socialista”. Para o autor, a Revolução Brasileira — tema que desenvolverá com mais força a partir dos anos 1960 — tem como missão criar um capitalismo nacional, voltado para si, soberano, industrializado, com reforma agrária e elevação material e cultural das condições de vida do povo trabalhador.
Olhando a partir de um panorama histórico, mesmo com todas as mudanças em seu pensamento, persiste nele uma visão integracionista da questão racial, onde o conflito não precisava ir até as últimas consequências como meio de resolver o problema do negro brasileiro. Conflito sim, mas limitado e como meio de mudança e superação da patologia do “branco” brasileiro.
Neste ponto, antes de continuar, é necessário precisar o que estamos chamando de integracionismo. Sumariamente e de forma precária, podemos definir três grandes posições na história do movimento negro e da luta antirracista no Brasil e no mundo. 1 – As teorias essencialistas, como a perspectiva de Marcus Garvey, que via como impossivel e até não desejável uma convivência igualitária entre brancos e negros e tomava como solução a formação de um etno-estado negro em África; 2 – as abordagens revolucionárias, com forte influência do marxismo no século XX, que viam o racismo como parte orgânica e indissociável do capitalismo, colonialismo e imperialismo e colocavam a superação do racismo como tarefa só realizável em um processo revolucionário; 3 – as abordagens reformistas e integracionistas que compartilhavam de vários aspectos do dignóstico dos marxistas sobre a relação entre capitalismo e racismo, mas viam a possibilidade de, a partir de reformas democráticas, superar a dominação racial no capitalismo.
Guerreiro Ramos situava-se no terceiro polo. Defendia a possibilidade de superar o racismo sem processo revolucionário e até mesmo sem um reformismo forte. O Brasil precisaria apenas de substantivas, mas pequenas mudanças na sua dinâmica superestrutural. Nesse sentido, tomando uma licença poética, podemos dizer que Guerreiro estava numa espécie de “ala direita” deste polo. A recusa de solução revolucionária (seja socialista ou democrático-burguesa) para questão racial, a oposição insistente em correlacionar raça e classe, a negação do fundamento econômico no racismo brasileiro e um debate superficial sobre o papel do Estado e poder político na reprodução da racialização da sociedade indicam um caminho de mudanças sociais, políticas e institucionais que apenas alterem as condições de acesso à oportunidades na dinâmica concorrencial do capitalismo dependente brasileiro — ou seja, mudar os fatores de organização da concorrência na formação econômico-social.
Com mudanças e tensões que veremos nos próximos textos, Guerreiro Ramos não consegue superar um universo de classe média na análise da questão racial e na proposta de uma política antirracista — ou, melhor dizendo, o sociólogo situa-se no lugar político-analítico de classe média negra. Não creio que seja a formação de origem católica, a proximidade com o integralismo na juventude, a relação sempre tensa e conturbada com o marxismo — em especial com os comunistas organizados no PCB — ou as influências teóricas mais conservadoras (como o funcionalismo) que expliquem o núcleo dinâmico das posições de Guerreiro Ramos sobre a questão racial. Creio que foi sua posição de classe o elemento determinante; e com tensões, avanços e óbvias encruzilhadas, ele nunca superou esse horizonte na sua reflexão. Explico.
Guerreiro Ramos nasceu em 1915. A partir da Revolução de 1930 ele se depara com uma substantiva transformação do Brasil. Passados os primeiros 15 anos de governo Getúlio Vargas, com suas diferentes fases e contextos, acelerou-se a urbanização, industrialização e a modernização do aparato estatal (especialmente na esfera federal). Complexificou-se a divisão social do trabalho e vastas oportunidades de emprego para uma classe média foram criadas. É uma época histórica de crescentes oportunidades de trabalho intelectual com prestígio social e remuneração acima da média salarial do povo trabalhador.
O nosso sociólogo foi um dos beneficiados por esse período histórico aberto pela Revolução de 1930. Ao mesmo tempo, na dinâmica de competição da sociabilidade capitalista, o racismo brasileiro atuava como poderoso fator de barragem e reserva de mercado para a população branca. Então estavam abertas oportunidades para ampliar um pequeno setor negro da classe média, ao mesmo tempo que diversas estruturas sociais barraram o acesso a essas oportunidades e à progressão — material e simbólica — dos integrantes negros da classe média em formação.
Iniciativas como o TEN e a produção de Guerreiro Ramos nos primeiros anos da década de 1950 tinham como objetivo aumentar a competitividade da população negra no acesso a essas oportunidades e, ao mesmo tempo, combater a ideia de unidade entre a classe média negra e o vasto proletariado negro em torno de um projeto de classe independente e de ruptura com o padrão de reprodução do capital e o sistema de dominação política. Uma posição ambígua: denunciava as barreiras, mas não visava destruir a estrutura que criava tais barreiras — disso resulta, em última instância, a separação da dimensão econômica da socióloga e cultural na compreensão do racismo. Em suma, uma mudança sem radicalidade. Afinal, a radicalidade, necessariamente, iria contra as próprias possibilidades de ascensão social postas ao nosso sociólogo.
Adilson Bariani Junior (Editora Unesp, 2011), em importante trabalho sobre a obra de Guerreiro Ramos, lembra que nosso autor, em 1947, casou com Clélia Calasans de Paula, mulher branca da classe média carioca. Seja nas relações interpessoais, seja na dinâmica profissional e de atuação política (no TEN e posteriormente), Guerreiro Ramos está profundamente mergulhado em ambientes de classe média. Bariani Junior oferece uma importante pista para pensar o lugar de classe de Guerreiro Ramos e sua reflexão sobre a questão racial:
“Significativamente, o sociólogo, segundo relato de Abdias Nascimento, A. (2003a), teria passado, entre 1942 e 1945, ‘pela maior crise intelectual e espiritual de sua vida’: marginalizado, sem reconhecimento acadêmico, relegado pela universidade, ‘exilado’ no Rio de Janeiro, escorando-se no serviço público para sobreviver… Não obstante, ingressa no TEN e passa a ocupar-se com a militância no movimento negro, ao qual se dedicará intensamente até meios dos anos 1950, não fortuitamente, quando ingressa na Assessoria de Vargas, na Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, no Grupo de Itatiaia, Ibesp e Iseb. Assim, no final dos anos de 1950, a questão do negro não será mais objeto de sistemática atenção por parte do autor. Ao menos pessoalmente, Guerreiro Ramos comprovava suas teses: a afirmação da negritude resgatou sua autoestima, sua autoconfiança e capacidade de assunção de seu ‘destino social’, de outro modo, ao ver-se aceito e ‘adestrado’ na cultura da classe dominante, desfrutando de relações ‘frontais’ com a elite ‘branca’, afastou da questão do negro, só vindo a mencioná-la novamente em 1981 — em entrevista (Oliveira, L., 1995, p.174) pouco antes de sua morte — para queixar-se do país e da falta de reconhecimento de sua importância como sociólogo, por causa de sua condição de cor” (BARIANI, 2011, p. 119).
Como apontado, o horizonte de classe será um limitante permanente na reflexão de Guerreiro Ramos sobre a questão racial. Buscaremos desenvolver esses e outros aspectos nos próximos textos dessa coluna.
(*) Jones Manoel é historiador, professor, mestre e doutorando em Serviço Social, escritor, educador, comunicador popular e militante comunista.