A leitura de Vacina sem revolta, do jornalista e escritor Lira Neto, passada a traumática experiência do combate ainda não concluído contra a covid-19, é daquelas que agarram e que mexem com o estômago. Mesmo para mim que, por estudar o movimento dos escritores naturalistas no Brasil, venho me encontrando com alguma frequência com o nome de Rodolpho Theophilo, desde que li, em 1999, a primeira biografia escrita por Lira Neto, O poder e a peste.
Lira conta aqui que tomou emprestado, para este novo livro sobre o escritor, professor e farmacêutico, o título do texto que escrevi sobre O poder e a peste na “Ilustrada”, da Folha de S.Paulo. É coisa que me orgulha, embora creia ter feito apenas o que julgava, e continuo considerando, meu trabalho naquele momento.
Jornalista com pouco mais de cinco anos de idade, à época recebi de meus chefes um livro publicado e um pedido de que o avaliasse. Abri, li e disse o que pensava: a história é fantástica e rende uma capa do caderno cultural.
Acreditava, e continuo acreditando, que algumas das melhores obras publicadas no país, tanto em matéria de ficção, quanto de não ficção, nascem em editoras tradicionalmente fora do circuito dominante, e um jornalista da área de cultura tem obrigação de manter os olhos bem abertos para essa produção, sob o risco de se tornar um simples divulgador das maiores editoras e não um produtor e mediador cultural.
Escrevi um texto que à época que considerei mais curto (limitações da profissão…) do que gostaria e sugeri para aquela reportagem-resenha o título A vacina sem revolta, pois a trajetória do cientista, farmacêutico e romancista Rodolpho Theophilo dialogava, quase que diretamente, com o tristemente famoso episódio da Revolta da Vacina, de 1904.
No caso de Oswaldo Cruz, o desejo profilático de controlar a febre amarela no Rio de Janeiro esbarrou na resistência, parcialmente justa à época, de uma população que não queria aceitar se vacinar por imposição do Estado sem uma justa explicação.
A experiência de Rodolpho Theophilo mostrava que era possível fazer ciência e buscar, simultaneamente, a concordância da população para com a importância da vacinação: uma questão que também foi nossa, quando começaram as surgir as vacinas de covid-19. Apesar do esforço coletivo de cientistas e jornalistas sérios em produzir conhecimento e convencimento, redes irresponsáveis de movimentos antivacina atrapalharam, com auxílio de um presidente inepto, o avanço vacinal.
É certo que Theophilo não adotou um método de convencimento mais democrático que o de Oswaldo Cruz apenas por decisão sua: ao contrário do que desejava, não contou com apoio político ou material do governo do Ceará, a partir de 1900, para promover a vacinação. Fez tudo praticamente sozinho, com os recursos que vinham de outras atividades, sobretudo a de professor e de fabricante da cajuína.
Durante a pandemia de covid-19, provocado por um artigo da revista Imunizações, da Sociedade Brasileira de Imunizações, li trechos de Varíola e vacinação no Ceará, do próprio Rodolpho Theophilo. Fiquei impressionado com a clareza e a objetividade com que apresentava dados de vacinação.
Na página 22 da obra, por exemplo, ele escreve: para se avaliar a virulência da varíola, da falta de vacina nos retirantes e da benignidade da bexiga nos vacinados, publico o movimento do hospital de S. Sebastião de 1º a 30 de novembro. Das 875 pessoas com varíola:
Faleceram – 326
Saíram curados – 141
Ficaram em tratamento – 408
Entraram vacinados – 32
Sem vacina – 843
Dos vacinados, nenhum faleceu.
Não apenas os resultados mostravam seu empenho, sua metodologia sistemática e a efetividade da vacinação, como a forma de apresentar esses dados era praticamente a mesma que seria adotada pelos pesquisadores, veículos de imprensa e pelos órgãos de saúde de fato envolvidos na divulgação de informações confiáveis sobre a covid-19. Com a diferença que, nas epidemias de varíola no Ceará, a proporção de mortos era significativa, e assim o número de curados não servia para mascarar a gravidade da situação.
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‘Vacina sem revolta’ aborda a epidemia de Varíola no Ceará no início do século XX e a luta de Rodolpho Theophilo pela imunização
Rodolpho Theophilo, em que pese sua dedicação sincera, não é tratado como uma figura sacrossanta por Lira Neto. Algumas de suas contradições e equívocos são apresentadas pelo jornalista-escritor. Theophilo era abolicionista e proprietário de escravos, apenas para citar uma contradição radical.
Filiado à escola naturalista, foi provavelmente o escritor com maior formação e prática científica no Brasil, o que era tremendamente valorizado pelos discípulos do francês Émile Zola. Apesar disso, foi bastante censurado por colegas, muitas vezes por usar pouco da imaginação em obras como o romance A fome e o conto Violação.
As críticas que recebeu nem sempre foram bem recebidas, mas é significativa sua liderança junto ao grupo da Padaria Espiritual, entidade que reuniu uma geração de respeitáveis escritores cearenses e que expulsou Adolfo Caminha, autor de Bom-crioulo e A normalista, justamente por criticar Theophilo.
Também é possível identificar no discurso do cientista traços racistas que não devem ser apagados. Eles faziam parte dessa figura, como de muitos intelectuais de sua época e, infelizmente, também da nossa.
Lira Neto, nesse retorno à figura contraditória de Rodolpho Theophilo, aprofunda essa questão que nos é tão atual, a da luta da ciência contra os discursos anticientíficos. O que era parte importante do seu primeiro livro volta com notáveis acréscimos de informações e redação.
Quanto à forma, o jornalista-escritor que se tornou referência como autor de livros-reportagem e biografias, por exemplo, perdeu o temor de usar notas de referência, um sinal de maturidade, atualmente, nos livros de jornalistas preocupados com a exatidão e o diálogo com os leitores; quanto ao conteúdo, ficam evidentes os diálogos, nas entrelinhas, com problemas que fizeram parte do nosso cotidiano de enfrentamento à doença causada pelo coronavírus: a moléstia é outra, mas Lira Neto mostra como a luta contra a varíola foi prejudicada, no Ceará, por propostas de remédios milagrosos e tratamentos alternativos, aliados da falta de planejamento e de governantes que se furtam de suas responsabilidades, bem como de discursos moralistas que enxergam a corrupção real ou imaginária, em tudo para justificar a inação ou o privilégio a grupos próximos
No quesito privilégio, aliás o livro não poupa nem José de Alencar, também biografado por Lira Neto (em O inimigo do rei). O escritor romântico e político conservador, sócio de uma empresa ferroviária discursou na tribuna do Senado contra a estatização da estrada de ferro de Baturité, da qual era um dos sócios, proposta num dos momentos de seca no Ceará, como maneira de facilitar a organização de frentes de trabalho que minorassem o sofrimento e a falta de recursos dos migrantes que chegavam à capital, Fortaleza.
O discurso de Alencar, que além de antiabolicionista era um negacionista em relação à seca que avançava, evita, naquele momento, a estatização, o que foi muito bom para a preservação do seu capital, mas atrapalhou a vida de milhares desses migrantes.
A virada do século XIX é um período fascinante, em que muitos dos conflitos que vivemos hoje se apresentaram de forma radical. Em que as possibilidades de avanços civilizatórios, como a vacinação e as políticas ativas de proteção governamental aos trabalhadores e ex-escravizados, foram barradas por elites autoritárias e gananciosas.
O Brasil avança materialmente nessa época, mas ao mesmo tempo recua política e socialmente, encontrando saídas nada louváveis para manter a dominação conservadora.
Em meio a essa situação, o país conhece algumas figuras notáveis, que venceram perseguições e, ainda que com contradições, nos deixaram um legado positivo, sobre o qual devemos buscar referências para construir um mundo melhor. Conhecer essas vidas, e Lira Neto é um especialista nisso, nos ensina muito sobre nossos potenciais, que são muitos, e também sobre os obstáculos que nos limitam e que, infelizmente, também não são poucos, mas precisam ser vencidos.
(*) Haroldo Ceravolo Sereza é doutor em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O título da biografia Vacina sem revolta é o mesmo da reportagem que Haroldo escreveu para a Folha de S.Paulo em 29 de novembro de 1999, quando do lançamento de O poder e a peste, primeiro livro de Lira Neto. O texto que Opera Mundi publica agora é um prefácio ao livro Vacina sem revolta, lançado nesta semana pela Bella Editora.