A imprensa asiática cobriu melhor que a ocidental a eleição e a revolta iranianas. Houve por aqui uma deficiência de foco, para usar uma observação da atriz inglesa Vanessa Redgrave: “A gente não sabe o que está acontecendo onde as câmeras não focam”, disse ela. As câmeras orientais ao menos olharam em volta; as de cá fecharam no tema mocinho e bandido. Faz muita diferença: a mesma que existe entre a etérea pintura eclesiática européia e o claro-escuro que tomou seu lugar na Renascença, mais fiel à realidade.
Um exemplo foi a reunião dos ministros do exterior do G8 em Trieste, no final da semana passada, que, por iniciativa da Rússia, não saiu tão desfavorável ao Irã quanto propunham Itália, França, Inglaterra e Alemanha – entre outros itens de interesse russo. O comunicado final, de compromisso, afirma que cabe ao Irã decidir sobre a vontade dos seus eleitores – reconhecendo a designação, uma semana atrás, do presidente Mahmoud Ahmadinejad para novo mandato. Em troca, cobrava do governo iraniano garantir a segurança dos manifestantes que pediam para anular a eleição.
O noticiário deu destaque quase zero ao comunicado – embora ele mude da água para o vinho a tensão acumulada entre Rússia e Europa – por causa da Geórgia, da Ucrânia, de Belarus, da Polônia etc. Preferiu destacar declarações dos ministros europeus, batidas de uma semana. Uma frase padrão, do alemão Frank Steinmeier: “o que vimos em Teerã … é inaceitável …, a brutal repressão das … pessoas que reivindicavam os seus direitos legítimos”.
O lado asiático também foi duro com Ahmadinejad: o estilo fanfarrão, o fundamentalismo arcaico e o populismo conservador do governo dele estão lá. Só que o claro-escuro do noticiário mostrou nuances. A principal é que ele tinha popularidade e motivo suficiente para vencer, e bem, a eleição. Sobretudo porque a oposição assumiu um papel que, dentro e fora do Irã, se considera extremamente impopular: aceitar conversar com o G7 nos termos do G7 – ainda vistos como termos do ex-presidente George Bush.
Foi esse ângulo que sugeriu ao site Hurriyet, por exemplo, perguntar a empresários turcos porque a Turquia, geralmente associada ao G7, estaria “optando por Ahmadinejad” e não pelo reformista Mousavi. Porque é melhor assim, respondeu um deles: “Se Moussavi tivesse vencido, … os mulás conservadores, anti-americanos, amarrariam as mãos dele”. Em contraste com a ausência completa de conexão Ásia-Ahmadinejad no noticiário ocidental, o fato é que ele teve reconhecimento imediato e maciço – da Turquia ao Sri Lanka, da Índia ao Casaquistão, da Indonésia ao Paquistão – e especialmente pela Rússia e pela China. Imagine-se o peso disso na eleição – e sendo oposição do G7.
No particular, a cobertura ocidental foi melhor. Deu em cima da hora os dados objetivos disponíveis no Ocidente sobre as chances de Ahmadinejad. Foi no Washington Post que saiu o artigo assinado pelos autores de uma rara pesquisa independente sobre o Irã, feita em maio (veja os links abaixo). Ela afirma que os iranianos querem mesmo a abertura para o Ocidente. Mas acreditam que Ahmadinejad fará isso melhor que os outros porque é mais firme. Der Spiegel, dias depois, entrevistou um dos autores e ele disse que “a mídia ocidental superestimou o crescimento de Moussavi .. por exemplo, sobre como Ahmadinejad foi visto como vitorioso no debate na tevê”.
Do lado reformista, a cobertura aqui também deu bem as análises estatísticas apontando sinais fortes de fraude. Investigados pelo Irã, colocaram sob suspeita três milhões de votos – o suficiente para anular qualquer eleição. Mas em princípio: recontado o pacote frente a câmeras e fiscais, decidiu-se que as irregularidades não alteravam o voto. Não se sabe se por avaliação técnica, política ou ambas. A estatística então ficou por aí. Jornalistas asiáticos argumentaram que muita gente estava na praia e votou fora do domicílio. Poderia gerar alerta artificial. Eleitores azeris que tenderiam a votar em Mousavi por afinidade étnica podem ter mudado de opinião. Mousavi tinha quase 50 mil fiscais, quase um por mil votos, e nada disseram nem na hora nem depois.
Tudo isso é pouco para entender Ahmadinejad, mas é o mínimo para dar aos leitores um quadro mais renascentista da situação. A eleição é passado, mas não se acredita num fim. E o que vem agora, não há como fraudar: depende da força política real do presidente no Irã. Um dado relevante pescado na imprensa asiática é que ele já começou a reforma – por exemplo, mudando a Constituição islâmica para poder privatizar a economia. O nó é que a economia está atrasada tecnologicamente, e agora quer tirar o atraso.
Uma aposta fácil, não necessariamente correta, é que Ahmadinejad vai se apoiar principalmente na Ásia, e não no G7 como atualmente. A China, assim que se anunciou a reeleição, divulgou que logo vai passar o G7 como maior parceiro comercial do Irã, com o qual teria acertado no ano passado 38 megaprojetos – de produção de energia, metalurgia, telecomunicações, construção naval e outros setores de infraestrutura. E alardeou – a notícia parecia um anúncio – que 700 mil iranianos usavam diariamente uma rede de metrô construída pela China.
O noticiário ocidental parece que faz questão de ser etéreo em relação à Rússia e a China. Se não, veria o contraste do que o G7 defendia com o que concordou em Trieste. Primeiro, voltaram a negociar com os russos os limites da aliança militar do G7, a Otan. Estavam de relações cortadas desde a guerra Rússia-Geórgia em agosto de 2008 e ficaram de bem. Segundo, aceitou definir as regras do mercado de gás natural na Europa, reivindicação russa há tempos. Detalhe: no meio tempo, Rússia e China definiram o mercado asiático, de modo que o G7 agora tem de negociar com dois.
Tudo isso está escrito no Ocidente mas os leitores não veem – está sempre fora do foco. O mesmo vale para a força política de Ahmadinejad. O noticiário ocidental poderia ter lido, por exemplo, o ótimo artigo que a IPS deu em dezembro, do jornalista Gareth Porter logo após voltar do Irã. Ele conta que o maior teste eleitoral do presidente, desde a posse em 2005, foi em março do ano passado, e o dado central seria o esforço de Bush para unir países árabes contra Ahmadinejad. E ele elegeu a maior bancada do Majlis, o parlamento, fazendo 90 dos 290 parlamentares.
Links:
Pesquisa desfavorável a Ahmadinejad
Pesquisa de opinião: matéria 1 e matéria 2
Reação a Ahmadinejad na Ásia: matéria 1 e matéria 2
Rússia e Europa: matéria 1 e matéria 2
China e Irã: matéria 1 e matéria 2
* Flávio Dieguez é jornalista. Foi editor da revista Superinteressante até 2000 e chefe da Agência Brasil entre 2004 e 2006.
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