Tentar entender o atual conflito chileno-mapuche implica necessariamente fazer um percurso pela sua história, unida profundamente à terra, sendo esta essencial no seu contexto cultural, como patrimônio de toda a comunidade, unida a uma dimensão espiritual e sagrada.
Neste sentido, pode afirmar-se que o eixo principal do conflito mapuche é a propriedade da terra, e é necessário entender que, para além da posse material, a terra para o mapuche constitui a gênese de toda a sua cosmovisão e construção ideológica particular, que avaliza a sua demanda histórica de território e autonomia.
Quando os primeiros espanhóis chegaram ao Chile, no ano de 1535, atraídos pelas artificiosas promessas de “ouro em grandes quantidades” feitas por indígenas de Cuzco, seriam logo recebidos nas margens do rio Itata por um povo de estirpe indomável e guerreira, que não chegariam a dominar nunca, pois não conseguiram torná-los vassalos durante todo o seu domínio até o século XIX, vendo-se obrigados, a partir de 1641, mediante o tratado de Quilín, a reconhecer a autonomia da Nação Araucana, aceitando a sua soberania territorial nas terras ao sul do Bío Bío.
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Foi assim que os mapuche, diferentemente dos outros povos indígenas da América, conseguiram manter a sua liberdade até 1881, numa situação de guerra com períodos de paz, mas autônomos como povo. Nesses três séculos, o povo mapuche tinha conseguido constituir-se como sociedade agropecuária, com grandes diferenças em relação aos indígenas que tinham encontrado os espanhóis nas suas primeiras incursões, sendo capazes de exercer com habilidade o comércio com crioulos, espanhóis e outros estrangeiros. A sociedade mapuche também tinha experimentado importantes mudanças políticas, fortalecendo-se as alianças entre os lonkos (chefes comunitários mapuche), provocando-se verdadeiras formas germinais de centralismo político.
Seria depois da independência do Chile e sua constituição como nação que nasceriam as bases deste conflito histórico. A necessidade de crescimento econômico dos crioulos, somada à ideia dominante do paradigma Estado-nação, impulsionaram os afãs expansionistas e de dominação, na ideia de construir a força a suposta “nacionalidade chilena”.
Mediante uma cruenta guerra de ocupação, a incipiente nação adoptou uma verdadeira lógica de “limpeza étnica”, recorrendo ao massacre de populações completas, ao saque de gado e à destruição de moradias e terras. Depois do eufemístico nome de “Pacificação da Araucânia” ocultou-se a determinação de subjugar, submeter e apropriar-se das terras dos autóctones. Os sobreviventes ao extermínio iriam ver-se obrigados a se deslocar para o sul, confinados a viver numa zona que constitui aproximadamente 5% dos seus territórios originais. As terras usurpadas seram distribuídas a colonos do outro lado do mundo, principalmente espanhóis, alemães, italianos e ingleses, com a ideia de assegurar a ocupação e dar fins produtivos à terra.
Ditadura
Uma vez reduzido o espaço do território mapuche, vai prever-se a divisão dos terrenos que ainda conservavam durante quase todo o século XX, em frontal oposição à sua cosmovisão sobre o uso comunitário da terra, favorecendo com isso a revenda (a muito baixo preço) dos lotes obtidos pelos novos pequenos proprietários mapuche aos grandes latifundiários.
Durante a ditadura militar, encabeçada por Augusto Pinochet, outras ações somaram-se às anteriores, principalmente os subsídios à instalação e operação de madeireiras em terras mapuche, numa política de fomento florestal que reduziria ainda mais o seu dizimado território, erodindo gravemente os solos, causando a degradação dos recursos naturais e impossibilitando as atividades agrícolas tradicionais, extinguindo na voraz desflorestação a fauna e flora naturais, afetando com isso as manifestações religiosas e culturais mapuche, fundadas na terra e no seu equilíbrio. Estas políticas seriam não só mantidas pelos governos posteriores, na chamada “democracia”, como avalizadas e aprofundadas. Foi assim que, durante a década de 1990 e pouco depois de ter sido promulgada a lei que dava pela primeira vez existência jurídica no Chile aos povos indígenas, no momento em que o conflito mapuche reaparecia com nova força, não duvidaram em usar todas as ferramentas que herdaram da ditadura.
Durante os primeiros governos da Concertação (coligação de partidos que governaram o Chile durante duas décadas depois do fim da ditadura em 1990) aplicou-se num primeiro momento a lei de Segurança Interior do Estado, o que de certa forma reconhecia os crimes imputados aos mapuche em conflito como crimes políticos, sendo em sua maioria processados por crimes contra a ordem pública. Ao mesmo tempo, observa-se um forte aumento na militarização da zona e portanto da repressão. Isto principalmente como resposta aos conflitos suscitados pela instalação da Hidrelétrica de Ralco.
Antiterrorismo
A partir do ano 2000, durante o governo de Ricardo Lagos, os crimes cometidos pelos mapuche passaram a ser processados sob a lei antiterrorista, obedecendo a um agravamento do conflito, produto das promessas incumpridas do presidente.
A lei antiterrorista de 1984 é considerada uma das mais duras da legislação chilena. Criada para combater os grupos insurgentes dos anos 1980 e 1990, a partir do ano 2000 e até hoje é utilizada para ser aplicada contra o povo mapuche, optimizada com uma reforma em 1994, que agrega novos argumentos de repressão política quanto à tipificação das “condutas terroristas”. No ano 2000, ocorre uma nova modificação, atendendo especificamente ao conflito mapuche em avanço e em particular às atividades desenvolvidas pela Coordenação de Comunidades em Conflito Arauco-Malleco. Estas reformas significaram na prática uma subjetivização de uma série de crimes comuns por esta catalogados, incluindo a noção de “finalidade” a cada um deles para passar a se constituir como crimes terroristas.
Estas finalidades recolhem o fato de que uma ação tenha como fim o produzir temor na população, bem como o fato de agir com o propósito de arrancar resoluções da autoridade ou impor exigências. O anterior significará na prática a perda de objetividade na hora de qualificar os crimes como terroristas, já que se se atuou ou não com determinados fins é sumamente difuso e pouco objetivo, produzindo-se ainda um efeito de dupla incriminação, ao poder ser catalogada uma mesma ação ao mesmo tempo como objetivo e como meio.
Promessa quebrada
Longe dos efeitos que Lagos pretendia, o conflito tendeu a agravar-se, culminando com o assassinato do jovem Alex Lemún por policiais, caso que foi condenado em primeiro lugar e arquivado pela Corte Marcial chilena, ficando na impunidade.
A condenação, em 2003, dos lonkos Pascual Pichun e Aniceto Norin, condenados a cinco anos e um dia de prisão como culpados do crime de realizar “ameaças terroristas” contra os proprietários de duas quintas da Nona Região e o “Caso Puluco Pidenco” no qual quatro mapuche foram condenados a 10 anos e um dia de prisão por “incêndio terrorista”, significou para o governo chileno uma série de chamados de atenção e condenações por parte de organizações internacionais de direitos humanos, como a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 2004, que aprovou um relatório que condenava o Estado e o governo chilenos por violação aos direitos humanos dos povos indígenas argumentando – entre outras causas – a de privilegiar o tratamento judicial da conflituosidade social, manifestando a sua preocupação pela aplicação do novo procedimento penal: “Vários especialistas dim que a combinação entre novo procedimento penal, lei antiterrorista e foro militar, estabelece uma condição de vulnerabilidade do direito ao devido processo, que afeta de maneira seletiva um grupo claramente identificado de dirigentes mapuche”, diz o relatório. Também houve denúncias por parte da CIDH, a Federação Internacional de Direitos Humanos, Amnistia Internacional e o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, que se manifestou profundamente preocupado com a aplicação de leis especiais ao contexto do conflito mapuche.
Seria esta pressão internacional, somada à suscitada por uma greve de mais de 60 dias dos presos políticos mapuche, que levaria ao último governo da Concertação, presidido por Michelle Bachelet, a afirmar que durante seu mandato não seria aplicada a lei antiterrorista. Esta promessa seria rompida no último ano de seu mandato, depois da prisão de Miguel Tapia Huenulef e, a partir deste momento, seria aplicada em outros casos.
Cenário de guerra
Na atualidade, é difícil determinar o número exato de presos políticos mapuche, dada a perseguição constante a seus dirigentes e o uso da prisão preventiva como forma velada de condenação extraoficial. Segundo dados obtidos da polícia chilena e de organizações mapuche e não-mapuches, existiriam por volta de 70 presos políticos mapuche, no quadro das lutas que desenvolve este povo, pondo o Chile como o país com mais presos políticos indígenas por defender direitos ancestrais.
A situação de ocupação militar e policial da zona mapuche por parte do Estado chileno é permanente. Diariamente, as comunidades mapuche que continuam lutando pela recuperação das suas terras são espancadas, ilegalmente ocupadas, vítimas de uma violência brutal indiscriminada, na qual inclusive as crianças são vítimas de insultos e humilhações, existindo casos de prisões ilegais e torturas aplicadas à população menor de idade.
Como em cenário de guerra, helicópteros sobrevoam diariamente a zona. Os habitantes sofrem controles de identidade diários e abusivos, os dirigentes mapuches são detidos arbitrariamente e processados por tribunais civis ou militares. Em muitas ocasiões, quando as causas são arquivadas ou absolvidos, novos processos são abertos numa clara perseguição e uma veemente decisão dos privar de liberdade. É necessário assinalar que os prisioneiros podem ser inculpados por testemunhas protegidas ou por declarações de terceiros obtidas sob tortura e que os tribunais os podem manter em cativeiro no mínimo por nove meses, só para investigar se são inocentes dos crimes pelos quais são acusados, além de que tais prisões são muitas vezes realizadas em recintos afastados das famílias e comunidades. Esta situação de isolamento, segundo os advogados defensores, “Agravaria arbitrariamente a prisão preventiva, sendo um ato de violência psicológica e institucional que só se poderia qualificar como terrorismo de estado”.
Negação
Como pano de fundo, a lógica do capitalismo selvagem se impõe e o Estado chileno ja se mostrou disposto a defender com todo o seu esmagador poder à indústria florestal chilena concentrada em dois grandes grupos empresariais, liderados pelo grupo Angelini, do Florestal Arauco, e o grupo Matte, do Florestal Mininco. É necessário dizer que só estas duas madeireiras possuem juntas mais cinco vezes terra que todo o povo mapuche.
Segundo o dirigente mapuche Hétor Llaitul, membro fundador da Coordenação Arauco Malleco e preso político, “este poder de dominação conta com todas as garantias do Estado chileno, na hora de nos incriminar e nos reprimir. O empresariado não só controla o poder econômico nas regiões em conflito, como ainda controla os meios de comunicação e é em definitivo parte do poder político. O governo atua em conluio com este e não fim de contas, controlam o poder judicial para defesa de seus interesses econômicos”.
Por sua vez, o Chile tem negado constantemente a existência de presos políticos, argumentando que se tratam de criminosos comuns ou terroristas e que não foi aplicada a lei antiterrorista contra demandas nem reivindicações sociais da população indígena. Essa tese é replicada reiteradamente nos meios de comunicação oficiais, influenciando os habitantes chilenos que vítimas de uma despolitização profunda inculcada durante 18 anos de ditadura e outros tantos de pseudodemocracia, cedem facilmente aos argumentos tendenciosos e criminalizadores dos grandes consórcios da informação nacional. Os títulos dos jornais parecem uma verdadeira antessala aos Tribunais nacionais, sentenciando a partir das suas tribunas midiáticas os acusados antes de que sistema penal cumpra com a sua tarefa.
Transformadores
Uma dessas montagens com muitas luzes e pouca substância, sustentadas por figuras da extrema-direita chilena, foi a das ligações que segundo “provas irrefutáveis” ligava certas organizações mapuche à guerrilha colombiana das FARC. Depois do desmentido das provas, tudo pôde ficar mais ou menos como anedótico, se não fosse por já existirem indiciados acusados, entre outras, de terem feito viagens à Colômbia.
Por outro lado, é preocupante a perseguição sistemática de que se solidarizar com a causa mapuche, negando-se a passagem pela região, sendo expulsos do país no caso de serem estrangeiros ou, mais grave ainda, sendo acusados depois de fracas montagens em termos de violência. Emblemáticos são os caso de Asel Luzarraga, escritor basco cuja prisão preventiva foi decretada no ano passado, ficando detido por mais de 40 dias sem qualquer prova. Também é esse o caso da realizadora Elena Varela, acusado de participação num assalto e quem foi declarada inocente depois de ter sido seqüestrada sem devolução de todo o seu trabalho documental na zona mapuche ao momento de sua detenção, a 7 de maio do 2008.
A recente tomada de comando por parte do direitista Sebastián Piñera, que durante a campanha presidencial afirmava admiração por Álvaro Uribe e a sua política de “segurança democrática”, pode levar a um recrudescimento na perseguição, criminalização e repressão das comunidades mapuche nos próximos anos, o que exige aumentar os esforços solidários para exigir a liberdade dos presos políticos e o fim do assédio, mas sobretudo para nos transformar em multiplicadores da sua história e sua luta ancestral, combatendo a invisibilidade e a indiferença.
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