233 reais por dia por pessoa presa. Essa é a bagatela que a empresa Soluções Serviços Terceirizados pode receber após ser agraciada com a concessão para construir e gerir um presídio em Erechim, no Rio Grande do Sul. Além das isenções fiscais, o projeto contará com financiamento de R$ 150 milhões por parte do BNDES. O valor estimado do contrato é de R$ 2,52 bilhões pelo período de 30 anos, e a empresa vencedora foi a única participante do leilão realizado no início de outubro na Bolsa de Valores de São Paulo. O edital, no entanto, está suspenso para retificação de um documento da empresa.
A primeira tentativa de realizar essa parceria público-privada foi em 2022, mas na ocasião nenhuma empresa se interessou pela proposta. Então o atual governo federal ampliou os benefícios e fez custosas movimentações para ingressar na política ianque de sistema carcerário, com a assinatura do Decreto 1.1498/2023, que amplia os benefícios para as privatizações do sistema prisional.
Na contramão das expectativas do movimento social com o novo governo, o leilão da concessão para o presídio gaúcho abre alas para uma nova fase de agravamento da política neoliberal de privatizações no Brasil. Além da nefasta lógica de transferência dos recursos públicos para o setor privado, essa medida fortalece o processo de encarceramento em massa e a violação dos direitos humanos no sistema de segurança pública.
Cadeia guarda o que o sistema não quis
O Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e China. Com mais de 830 mil pessoas presas, 67% são negras e 41% estão em prisão provisória, ou seja, sequer foram julgadas e condenadas, revela o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. A maioria dos presos está em cárcere por crimes contra a propriedade, como roubo (27,5%), ou por tráfico de drogas (25%).
Atestando a veracidade dos versos dos Racionais MCs, o Superior Tribunal Federal e a ONU denunciam as graves e sistemáticas violações de direitos humanos que acontecem nos presídios brasileiros. Com celas superlotadas, os presos vivem sob extrema violência e a prática de tortura é institucionalizada; não são raras as denúncias de que os presos comem comida azeda sem sequer ter acesso a atendimento médico. Ou seja, ser preso no Brasil é deixar de ser gente.
Luiz Silveira/Agência CNJ
Inspeção do DMF na Casa de Prisão Provisória em Aparecida de Goiânia em maio de 2023
De fato, a privatização dos presídios incentiva o aumento do encarceramento porque segue a simples e perversa lógica do capital: quanto mais presos, maior o lucro do empresário e dos acionistas (o Estado aporta recursos a cada pessoa presa).
E a tragédia está anunciada. Submeter o sistema prisional à lógica do lucro, somada à ideologia predominante do “bandido bom é bandido morto”, vai produzir máquinas de moer gente. Para o empresário, não existe justificativa para investir em melhorias e mais direitos para os presos; muito menos pressão pública, pois a sociedade já desprezou essas pessoas.
Governa pra quem?
O fato de que o Estado vai gastar até três vezes mais por preso no presídio privado, somado ao conhecido caso dos Estados Unidos, onde a privatização do sistema prisional virou um negócio lucrativo e o país chega à marca dos 2,3 milhões de seres humanos presos, denunciam que a política de privatizações do governo atende exclusivamente aos interesses do empresariado e do capital financeiro.
Pior: expõe um afastamento entre as decisões do governo e os interesses da base social que o elegeu e sustenta. Não à toa, a Nota Técnica assinada por 86 entidades ligadas à defesa dos direitos humanos e ao antirracismo revela a gravidade dessa política e pede a imediata revogação do Decreto 1.1498 e a suspensão do leilão de Erechim.
As manifestações são justas, pois os movimentos sociais que comemoraram a criação do Ministério da Igualdade Racial também têm a autoridade de exigir compromisso do Estado com a defesa dos direitos humanos e o combate ao encarceramento em massa.
A nossa história comprova que não é possível sustentar um governo do povo abrindo mão dos nossos princípios. E hoje, mais do que nunca, é preciso afirmar a construção de um país com justiça e dignidade. Sem dúvidas, isso não agrada à Bolsa de Valores. Mas a maioria está do lado de cá.
(*) Isis Mustafa é dirigente do partido Unidade Popular pelo Socialismo e 1ª vice-presidente da UNE.