A chuva intensa e os ventos da tempestade mediterrânea Daniel inundaram o leste da Líbia na última semana, afetando de forma excepcional a cidade costeira de Derna, situada em uma área baixa. O número de mortos nessa pequena cidade de 90.000 habitantes já ultrapassou 10.000, com muitos outros feridos ou desaparecidos. Quarteirões e famílias inteiras foram arrastados para as águas do Mediterrâneo.
Enquanto o mundo chora essa tragédia, é fundamental lembrar que não se trata apenas de um desastre natural. A culpa pela escala inacreditável de morte e destruição é do Pentágono e de seus aliados da Otan, que destruíram o governo central do país em uma guerra em 2011, mergulhando a sociedade em um estado de caos que continua até hoje.
A tempestade, chamada de “medicane” – um ciclone tropical mediterrâneo – trouxe ventos de mais de 120 km por hora, sete polegadas de chuva e ondas de até seis metros de altura após o rompimento de duas represas nas terras altas ao sul de Derna. A tempestade também causou grandes inundações na Grécia, Turquia e Bulgária, matando dezenas de pessoas, antes de aumentar sua intensidade e atingir a Líbia. Tempestades como essa são cada vez mais comuns no Mediterrâneo à medida que a temperatura média da água aumenta, e estão relacionadas a outros fenômenos climáticos extremos, como as ondas de calor brutais e as secas que se tornaram comuns no sul da Europa nos últimos anos.
A principal causa dos danos e das vítimas foi uma falha nas duas represas ao sul da cidade. Construídas em meados da década de 1970 pela empresa de construção iugoslava Hidrotehnika-Hidroenergetika, elas têm uma capacidade coletiva de cerca de 20 milhões de metros cúbicos de água. As represas forneceram irrigação para as áreas vizinhas e abasteceram a cidade com água por décadas, uma parte importante da infraestrutura para uma região como essa.
No entanto, quando as represas falharam, mais de 30 milhões de metros cúbicos de água foram liberados na cidade, destruindo quase um quarto de todos os edifícios. As represas não recebiam manutenção de grande porte desde o início dos anos 2000 e têm sido cada vez mais negligenciadas desde 2011. Além disso, o agravamento da crise climática exigirá a construção e a manutenção de uma infraestrutura de controle de enchentes muito mais robusta.
Essas cenas horríveis estão sendo cobertas pela mídia ocidental com um frio distanciamento. Por exemplo, o Washington Post faz a pergunta: “por que as enchentes na Líbia foram tão mortais?” e fornece respostas repletas de diagramas e fotografias aéreas da cidade inundada, enfatizando “chuvas”, “geografia” e “infraestrutura”. A Organização Meteorológica Mundial, sediada na ONU, declarou que a maioria das vítimas “poderia ter sido evitada” se a Líbia tivesse “um serviço meteorológico operando normalmente”.
Mas o que “não é normal” na Líbia? Esses mesmos artigos apontam para “uma década de turbulência”, “impasses políticos” e “divisões”, além de alusões à “difícil situação de segurança”. É verdade que a mudança climática está na raiz dessa catástrofe. Também é verdade que as instituições políticas – ou, mais precisamente, a falta delas – exacerbaram de forma significativa essa catástrofe mortal, mas a mídia ocidental está obscurecendo o contexto e anulando a responsabilidade das potências da Otan pela situação na Líbia.
Consequências da guerra da Otan chegam até os dias de hoje
Essa é a imagem da África em geral e da Líbia em particular que a mídia ocidental cultiva – condenada à tragédia pela geografia e pela má sorte, atolada em violência insolúvel e instabilidade política, incapaz de resolver seus próprios problemas ou operar “normalmente”. Na verdade, antes do golpe de Estado de 2011 apoiado pela Otan que derrubou o governo líbio e o líder de longa data Muammar Gaddafi, os líbios desfrutavam dos mais altos padrões de vida no continente africano e compartilhavam os lucros dos recursos naturais do país. Os lucros do ouro e do petróleo foram aplicados em projetos de desenvolvimento, incluindo infraestrutura e programas sociais.
Desde 2011, e com o colapso total do Estado líbio, o país tem sido dividido entre vários atores. Em 2014, três anos após o golpe, Derna foi tomada por militantes que se declararam leais ao ISIS. A cidade foi palco de combates brutais entre 2015 e 2018, quando os militantes alinhados ao ISIS foram derrotados pelas forças do general Khalifa Haftar.
Haftar lidera uma milícia chamada Exército Nacional da Líbia e atualmente controla grandes áreas do país. Ele está baseado na cidade de Tobruk, no leste do país, e é apoiado pela Rússia e por muitos Estados árabes da região. As Nações Unidas reconhecem o rival governo de Acordo Nacional, baseado em Trípoli. Haftar, que foi capturado e mantido como prisioneiro de guerra durante o conflito entre Chade e Líbia na década de 1980, era na época um ativo da CIA que o governo Reagan esperava usar para fomentar um golpe contra Gaddafi. Ao ser libertado, Haftar passou a década de 1990 e o início dos anos 2000 morando em Langley, Virgínia, onde também fica a sede da CIA. Mas após a guerra de 2011, ele caiu em desgraça com seus apoiadores ocidentais.
Os dois governos rivais estão informando números diferentes de desaparecidos e mortos nas enchentes, coordenando com diferentes organizações internacionais de ajuda humanitária e mantendo sistemas separados de comunicação de massa e resposta rápida. Esse também foi um dos mais importantes fatores a contribuir para a falta de aviso prévio aos residentes.
A destruição do Estado líbio em 2011 teve repercussões dramáticas em todo o mundo – um fator fundamental para a desestabilização e a proliferação de armas no Sahel, mais ao sul. Isso, por sua vez, está intimamente ligado à chamada “crise migratória”, que moldou e transformou a política europeia dramaticamente para a direita na última década.
Os meios de comunicação ocidentais cobrem superficialmente as inundações em Derna e, ao mesmo tempo, absolvem o papel da Otan e do imperialismo dos EUA no contexto político, histórico e econômico dessa catástrofe e de tantas outras que ocorrem em todo o mundo.
(*) Tradução de Pedro Marin
International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies
Após inundações, número de mortos nessa pequena cidade de 90.000 habitantes já ultrapassou 10.000