“Destrucción”. Essa foi a palavra símbolo da candidatura de Javier Milei nas eleições argentinas de 2023, marcada por marretadas na maquete do Banco Central, motosserras para cortar gastos, promessa de dolarização e destruição do próprio peso argentino, e discursos contra a assim chamada “casta” – que no imaginário neo-direitista seria formada pelos velhos poderes peronistas e seus “parasitários” sindicatos, mas também pela direita tradicional e a centro-direita.
Acompanhando a guinada à direita em tantas partes do mundo, Milei se mostrou um sucesso publicitário sui generis: com estilo rockstar, jaqueta de couro preta e costeletas, um vocabulário ácido cheio de impropérios, e a habilidade de virar ao avesso os sentidos comuns da política, esse economista outsider e astro B de televisão teve votos suficientes para vencer o peronista Sérgio Massa no segundo turno, apesar de ter perdido para ele no primeiro. Ou seja, além de seu recém criado partido La Libertad Avanza (LLA) precisar administrar uma minoria de 40 deputados (de 257) e 8 senadores (de 72) devido ao mal desempenho no primeiro turno, dependeu do apoio da tal “casta” – a direita tradicional em torno de Maurício Macri e Patricia Bullrich – para vencer o segundo. E esse dado não é menor, pois a correlação de forças Argentina hoje tem na direita tradicional um fiel da balança.
Não por acaso, as derrotas que Milei sofreu até agora uniram invariavelmente dois ingredientes: centenas de milhares de manifestantes nas ruas contra o governo e fortes fissuras no bloco de poder, com segmentos das direitas tradicionais questionando os métodos ultra-centralizadores do presidente. Na Argentina, assim como no Brasil, a neo-direita conquistou mais apoio popular e quer centralizar o poder, só que precisa dos votos e suporte político da direita de sempre. O bloco de poder é conduzido por uma minoria pseudo-rebelde e ultra-autoritária, enquanto a maioria parlamentar responde a outras modalidades de conservadorismo.
Nos primeiros 80 dias de Milei na presidência, duas fronteiras de “destrucción” se mostraram mais brutais. A primeira é a destruição dos direitos sociais, com suspensão abrupta de políticas de assistência, corte de mais de 38% das aposentadorias, eliminação de subsídios ao consumo popular (como a conta de gás que aumentou mais de 80%), e o congelamento de todas as obras públicas com forte impacto de desemprego. Tais cortes, segundo projetou o governo, já correspondem a 5% do PIB, um ajuste sem precedentes na história do país e típico de regimes autoritários. Junto dele, vieram medidas repressivas explícitas contra greves, sindicatos e protestos populares: um draconiano protocolo antipiquetes, que considera “protesto” a reunião de mais de três pessoas nas ruas, a criminalização, vigilância e ameaça a manifestantes e o uso de novas tecnologias de contenção de multidões. Tudo isso agravou a pobreza no país, que já acomete mais de 26 milhões de pessoas (57% da população), e fez disparar a inflação mensal, que atingiu 20,6% em janeiro e 254% ao ano.
A segunda frente de destruição se volta contra a própria estrutura do Estado, a começar pelo corte de metade dos ministérios (de 18 a 9 – incluindo o fim das pastas de Educação, Trabalho e Desenvolvimento Social, unificados sob o aberrante signo de um “ministério do capital humano”), logo seguido pelo DNU 70/2023 (decreto de necessidade e urgência intitulado “Bases para a reconstrução da economia Argentina”) e a Lei Ônibus (Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos), com 664 artigos no texto original. São pacotes de privatizações, desregulamentação ambiental, centralização do poder na presidência, proibição de protestos e greves, e destruição das leis trabalhistas.
World Economic Forum/Ciaran McCrickard
O presidente argentino, Javier Milei, durante encontro anual do F´órum Econômico Mundial em Davos. 17/01/24
Para atingir a destruição do Estado como poder regulador da sociedade, Milei depende da imposição de um ultra-Estado neoliberal, com poderes centralizadores, que além da repressão social precisa assegurar as chamadas “faculdades delegadas” do Legislativo ao Executivo. Essa é a natureza autoritária/privatista do “capitalismo de desastre”, como analisou Naomi Klein. Em outras palavras, quanto pior, melhor. É assim que operou a doutrina do choque no Chile de Pinochet (1973-1990) e na Argentina da Junta Militar (1976-1983), que assassinou e desapareceu com mais de 30 mil pessoas. Historicamente, é com base na doutrina do choque que opera o amálgama neoliberalismo-fascismo.
A essência do DNU (que entrou em vigência em 29 de dezembro) e da Lei Ônibus (que sofreu um revés no congresso e está ameaçada de não já tramitar com a mesma fúria) é a repressão e a privatização em ritmo de choque. Nesse sentido, a identificação do governo Milei com a última ditadura argentina ultrapassou a retórica e se tornou programática: reprimir para privatizar. A repressão ao mundo do trabalho, a destruição do direito à greve e dos poderes de negociação sindical, bem como a liberação geral dos recursos naturais para privatização internacional mostram de maneira crua a que veio Milei. A espoliação, que já vinha acelerada dentro do escopo progressista, atingirá um novo patamar, por meio de um salto qualitativo – intenções explicitadas no DNU e na Lei Ônibus, que são fundamentalmente antissociais, anti-ambientais e ultra-capitalistas.
As “fronteiras do extrativismo”, como conceitua a socióloga argentina Maristella Svampa, são as zonas de fronteira de acumulação e criminalidade na América Latina, vulneráveis à destruição ecológica mais exasperada, à apropriação territorial por grandes empresas, à violência social, racial e de gênero, ao trabalho análogo à escravidão, e todas as formas de contaminação ambiental. Essas fronteiras estariam plenamente abertas ao capital internacional com a Lei Ônibus de Milei.
Nada disso impediu que o paro nacional (greve nacional) de 24 de janeiro alcançasse uma massividade impressionante (em contraste com o imobilismo da esquerda brasileira). A intransigência do presidente argentino precisou forçosamente negociar com a pressão das ruas, as muitas tendências políticas do Legislativo e sobretudo a força política dos governadores, em um país cuja tensão “Buenos Aires X Províncias” remonta a mais de 200 anos. Milei basicamente acreditou que os legisladores transfeririam seus poderes a ele, o presidente. E que os governadores topariam perder repasses de arrecadação orçamentária sem nada em troca. Ledo engano. A direita tradicional e os governadores não vão entregar o poder para um novato.
Ao mesmo tempo que se mostrou mais eficiente que Bolsonaro na criação de um partido, uma estratégia e um programa, Milei também revelou o amadorismo vexatório de seu corpo político ao pedir que o projeto de Lei Ônibus “voltasse às comissões” em 6 de fevereiro, sem que o próprio Milei compreendesse a consequência dessa solicitação – o esforço da votação “em geral” da lei, que havia sido pactuada em longuíssimas negociações da direita, cortada pela metade e vencida pelo governo apesar das enormes mobilizações populares, foi completamente perdido. Assim, o chefe de gabinete dos ministros, Guillermo Francos, passou uma vergonha histórica em rede nacional de televisão ao revelar sua ignorância sobre os procedimentos de tramitação parlamentar. Ele não sabia que o pedido feito pelo parlamentar do LLA a mando direto de Milei era um pequeno suicídio. A correlação de forças interna à direita é incerta e a hegemonia da ultra-direita não está dada.
É essa mistura de vórtice ultra-liberal, autoritarismo e amadorismo que marca os primeiros meses do governo Milei. O capitalismo de desastre está no poder, com sanha devoradora. Para o presidente anarcocapitalista, quanto mais destruição, melhor, quanto mais pobreza e desespero, melhor. Os urubus estão rondando para se aproveitar da carniça.
(*) Joana Salém é historiadora da América Latina contemporânea; Doutora em História Econômica pela USP; e professora visitante da UFABC.