“O que me preocupa não é o grito dos maus e sim o silêncio dos bons.” O pastor Martin Luther King Jr. é o autor da frase que dá início a essa coluna. Nosso esforço aqui se dá no sentido de entendermos os motivos por trás do silêncio da mídia acerca dos maiores conflitos atuais no continente africano: falo da República Democrática do Congo e do Sudão. Crises humanitárias que estariam certamente estarrecendo o mundo caso ocorressem na Europa.
Começando pelo Sudão, em abril de 2023 um conflito armado entre o exército sudanês, liderado pelo General Abdel Fattah al-Burhane, e as Forças Paramilitares de Apoio Rápido (RSF) do General Mohamed Hamdane Daglo eclodiu, com os combates obrigando cerca de 1,6 milhões de sudaneses a fugir para o estrangeiro, a maioria para países vizinhos como o Chade e o Egito, provocando também um deslocamento interno de mais de 9 milhões de pessoas que viviam em áreas de conflito. Um relatório recente das Nações Unidas afirma que cerca de 25 milhões de pessoas no Sudão – mais de metade da população – necessitam de ajuda, incluindo quase 18 milhões que enfrentam insegurança alimentar aguda. No campo de refugiados de Zam Zam, no norte do Sudão, em Darfur, diariamente 13 crianças morrem por desnutrição, e ainda que a calamidade pareça impensável, são praticamente nulas as notícias encontradas nos grandes portais de notícias brasileiros sobre essa situação.
A história do Sudão inclui uma luta contra o domínio colonial, com as potências coloniais britânicas e egípcias controlando o país (Shillington, 2004). O desejo de independência e resistência ao domínio estrangeiro deixou um legado de agitação política e instabilidade. A exploração dos recursos do Sudão, como petróleo e produtos agrícolas, por interesses e corporações estrangeiras, criou disparidades econômicas e promoveu o sentimento anticapitalista. Essa desigualdade contribuiu para a agitação política e o apelo das intervenções militares.
A localização estratégica do Sudão no Chifre da África o tornou um ponto focal para as potências regionais e globais que buscam promover seus interesses (Holt, 2010). Essas rivalidades geopolíticas muitas vezes exacerbaram a instabilidade dentro do país.
Vários governos e entidades estrangeiras se beneficiaram da instabilidade do Sudão. Isso inclui poderes que apoiaram e manipularam líderes sudaneses para seus próprios interesses.
A situação da República Democrática do Congo (RDC) é igualmente preocupante. Com cerca de 75 milhões de habitantes, o leste do país abriga as principais minas de cobalto do mundo, fonte do precioso minério que está presente em todos os nossos eletrônicos, como smartphones, computadores, e eletrodomésticos como microondas, por exemplo.
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Tropa indonésia da ONU em uma estrada entre Faradje e Dungu, na República Democrática do Congo. 23/09/2010
O país centro-africano foi colonizado pela Bélgica do Rei Leopoldo II ainda no século XIX e sofreu nas mãos do rei belga brutalidades que marcaram profundamente sua história, com relatos de atrocidades como a amputação de escravizados que não cumprissem suas cotas de colheita diária. O Congo sofreu um genocídio que, estima-se, vitimou mais de 10 milhões de pessoas, um número tão absurdo que deveria constar nas páginas dos livros de história e currículos escolares por aqui. A herança colonial é recente e presente na história do Congo, que conquistou sua independência tardiamente, apenas em 1960.
Com duas grandes guerras civis, uma em 1996 e outra em 1998, que deixaram cerca de 6 milhões de mortos, a RDC enfrenta hoje, mais uma vez, uma crise humanitária sem precedentes. Segundo um relatório da ONU publicado em 30 de outubro de 2023, mais de 6 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar suas casas devido à violência entre 2017 e 2019, no leste do país, e, especialmente em Kivu do Norte, há confrontos violentos entre um grupo de rebeldes denominados M23 e as forças congolesas. Como afirmou o Coordenador Residente e Humanitário Bruno Lemarquis, da Missão de Estabilização da ONU (MONUSCO) no país, “a crise na RDC é uma das mais graves, complexas, prolongadas, e negligenciadas do mundo”. Como um conflito dessa magnitude num país tão importante para o desenvolvimento da tecnologia no mundo moderno não recebe notas diárias e alarmistas nos tabloides brasileiros?
O racismo faz parte da narrativa geopolítica, os países do norte global dominam uma agenda ideológica seguida à risca pelos grandes meios de comunicação, tornando a indignação seletiva. A valorização das vidas do norte do mundo é, por um lado, reprodução de uma agenda colonial antiga e, por outro, garantia de que a linha traçada entre aqueles que têm direito à vida, e aqueles cujas vidas não importam, permaneça intacta.
A subversão dessa linha é o que você vai ver nessa coluna, aqui traremos as vozes do continente africano e afro-brasileiras numa perspectiva disruptiva, abordando fatos ainda pouco explorados pelos grandes portais de notícia do nosso país e buscando provocar reflexões e principalmente ações na busca da valorização da sociologia e cultura africana e afro-brasileira.
Pode até ser que o silêncio dos bons nos preocupe, mas por aqui nossos corpos gritarão.
No mais, você pode ajudar doando para instituições como a ACNUR, a agência da ONU para refugiados, para os Médicos Sem Fronteira (MSF) e para a Cruz Vermelha para ajudar a atenuar a situação, em especial das crianças e dos refugiados dos conflitos, tanto no Sudão quanto na República Democrática do Congo.
(*) João Raphael (Afroliterato) é escritor, professor e mestre em educação pela UFRJ. É apresentador do programa “E aí, professor?” do Canal Futura.