Desde que Lady Gaga impôs novos padrões à indústria musical norte-americana, seus pares se veem na tentação de segui-la de perto, ou até mesmo sobrepujá-la. A prova de fogo do produtor, cantor e compositor de rap e rhythm’n’blues Kanye West é um filme de quase 35 minutos de duração chamado Runaway, recém-lançado via internet, a partir do site oficial do artista.
A moeda corrente da hora, pelo que indicam inúmeros exemplos, é um processo de (con)fusão da combalida indústria musical com sua irmã mais forte, o império cinematográfico centralizado em Hollywood. O que faz então Kanye? Vira agora também roteirista e diretor, apanha as inovações visuais e cinematográficas propostas por Gaga e busca exacerbá-las a seu modo, sob grandiloquência tipicamente hollywoodiana.
Leia mais:
Quem nasceu primeiro? Bush, Eminem ou seus apoiadores?
Bruce Springsteen já não canta que nasceu nos Estados Unidos
Os garotos estão mais felizes
Erykah Badu, porque a cor da pele ainda faz diferença no país de Michael Jackson e Hillary Clinton
Não demora muito a ficar explícito que o desejo de surpreender é mais cosmético que estrutural. É preciso ilustrar com grandiosidade a história de amor entre um homem (ele) e uma mulher-pássaro (que é chamada de fênix, mas entra em parafuso quando encontra um peru assado sobre a mesa). O que faz então Kanye? Preenche enormes vazios com imagens de explosões e fogos de artifícios (meio como se uns fossem equivalentes aos outros), trechos de raps que não são Runaway e outros malabarismos desprovidos de nexo ou continuidade.
A nova música, em si, só entra após 14 minutos, na cena-chave em que o protagonista apaixonado (e de olhar sofredor-canastrão) apresenta a “pássara” à sociedade num elegante jantar. É sabido que Kanye, o artista, é um obcecado por artigos de luxo (chegou mesmo a manter um blog baseado na paixão por objetos caros de design), e isso extravasa para a letra da canção, que de resto não tem muito a ver com o enredo do semifilme. “Você não pode culpar os outros, eles nunca viram um sofá Versace”, dispara, após um refrão no qual propõe brindes irônicos e belicosos aos “idiotas”, “babacas”, “imbecis”, “fracassados” e outros inimigos não-nomeados.
O rap-balada dura cerca de cinco minutos, mas se se estende para mais três minutos de evoluções solo elaboradas por bailarinas clássicas, acompanhadas apenas pelo piano do músico. A historieta segue arrastada e, bem, 100% romântica-hollywoodiana, com direito a falas como “eu não quero que você volte para o seu mundo”.
A fênix e o peru
Apesar da expectativa que cria, o “filmusical” Runaway é bastante convencional em forma e conteúdo. Se Gaga é voraz na citação cruzada de dezenas de referências pop por minuto, Kanye mostra-se bem mais econômico nesse aspecto. A menção mais explícita ocorre durante uma esdrúxula parada militar, no centro da qual surge um boneco inflável gigante de Michael Jackson. Mais ao final, Kanye homenageia o semideus posto com um verso declamado de Wanna Be Startin’ Somethin’. É nítido o desconforto do artista multifamoso de 2010 diante da trajetória trágica de seu antecessor, mas ele não consegue (ou não tenta) converter a dor em discurso.
O que fica de positivo do desastrado Runaway é a presença de um senso de inadequação, ainda que difuso e confuso. A identificação entre a fênix e o peru assado soa anedótica, mas parece dizer bastante sobre a sensação de não-pertencimento não do pássaro, mas do próprio Kanye. De resto, um verso espantosamente transparente da canção flagra a falta dramática de autoconfiança e de respeito próprio do vaidosíssimo músico: “Sou jovem, rico e tenho mau gosto”.
Kanye West não parece confortável na persona que veste, o que faz ele então? Na chamada vida real, depõe contra si mesmo aprontando confusões em premiações e se presta a bode expiatório do atarantado showbizz norte-americano. Na dita ficção, posa de novo rico, depõe contra o romantismo hollywoodiano, mergulha em excessos ultrarromânticos e… termina o videofilme musical Runaway fugindo em velocidade máxima.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
NULL
NULL
NULL