Na capa do disco, Laurie Anderson aparece caracterizada como homem, de terno, gravata, sobrancelhas muito espessas e um garboso bigode. Desde aí, pode-se ter certeza de que a embalagem guarda algo bastante diverso do habitual no hipertrofiado ambiente da música pop norte-americana. E, de fato, o que ela tem a dizer não se adequaria jamais aos panfletos divulgados rotineiramente por uma Lady Gaga ou um Quentin Tarantino.
Divulgação
Laurie, hoje com 63 anos, é uma criadora orientada à vanguarda, à performance, à mistura inteligente de linguagens artísticas. Mesmo assim, conquistou acesso às paradas em determinados momentos de sua história, como na estreia avassaladora com O Superman (1982), uma peça eletrônica de 11 minutos de duração, ou o álbum Mister Heartbreak (1984). Homeland, o trabalho mais recente numa trajetória que não chega a somar uma dezena de discos, não está destinado a repetir as façanhas pop dessa incrível cruzadora de fronteiras.
É que nele Laurie se dedica a documentar e traduzir profundamente os sentimentos e o estado de espírito de um(a) estadunidense qualquer, frente aos tempos bicudos de agora, de George W. Bush em diante. Para começar, há uma musicalidade oriental que perpassa quase todas as faixas e crava flechas envenenadas no coração da pátria da artista – seria um chamado seu às sensibilidades e às sonoridades árabes?, ou afegãs?, ou iraquianas?, ou iranianas?
Only an Expert é a mais contundente, e a mais óbvia, das (não-)canções de Homeland. Ali a autora espezinha a ditadura dos “especialistas” – “apenas um expert pode lidar com o problema” –, essa praga que nós, brasileiros, conhecemos na carne, mas eles, (norte-)americanos, parecem conhecer também, tão bem. “Se não houver problema, não há problema: os ‘experts’ inventam o problema”, ela diz.
Laurie desmonta a lógica alinhavada desses “experts”, entre citações irônicas a ícones pop-industriais como Nobel, Oscar, Oprah. Mas o que de início parece fino sarcasmo endereçado à picaretagem epidêmica na “mídia” logo se torna zarabatana de curare no coração do império: a narradora se põe a falar de subprime, hipotecas, spreads, bancos fechados, colapso dos mercados…
E chega o último grande bloco de Only an Expert: “Mesmo se um país puder invadir outro país/ e arruiná-lo e devastá-lo e criar guerra civil naquele outro país,/ se os ‘experts’ disserem que não há um problema, e todo mundo concordar com os ‘experts’,/ então invadir aqueles países simplesmente não é um problema./ E se um país torturar pessoas e prender cidadãos sem causa nem julgamento e criar tribunais militares/ isso também não será um problema/ a menos que algum ‘expert’ diga que este é o começo de um problema”. No país de Laurie, os “especialistas” não deram muito crédito a esses versos ou ao início de algum problema insinuado pela (não-)cantora – assim como “especialistas” cá do Brasil costumam esbravejar contra ditadura e tortura no Irã, mas não no país de Laurie, nem neste aqui.
“Um rato demora a perceber que está numa ratoeira/ mas, quando percebe, algo dentro dele nunca mais para de tremer”, ela já afirmara no início do CD, na lírica Transitory Life. Mais perto do final, em Dark Time in the Revolution, perguntará: “a Constituição foi escrita em tinta invisível?”, “faz sentido um país governar o mundo?”, “o grande barco está começando a naufragar?”. Ela mesma responderá: “Benvindos à noite americana”.
A música de Laurie Anderson é feita de política, e de poesia – de todo modo, uma está sempre contida na outra. Em parte das canções, elege discorrer sobre o amor, pura e simplesmente. “Para onde o amor vai quando o amor se vai?”, pergunta em Strange Perfumes. “Eu estava pensando em você/ e eu estava pensando em você/ e eu estava pensando em você/ e então eu não estava mais pensando em você”, espanta-se em Thinking of You. “Quando as lágrimas caem dos meus dois olhos/ elas caem do meu olho direito porque amo você/ e caem do meu olho esquerdo porque não suporto você”, fere (e ama) em My Right Eye.
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Narrativa
O centro de gravidade de Homeland se chama Another Day in America. Ali, Laurie retoma um recurso que aprecia usar (e que se comunica com a capa do novo CD): discursa como o alter ego Fenway Bergamot, de voz (ultra)masculina eletronicamente processada. Grave, ele(a) equipara dias a dólares. Constata que “alguns dizem que nosso império está morrendo, como todos os impérios morrem”. Fala do “começo de uma nova era”, do “início de um mundo novo em folha” (um outro mundo é possível?). Refere-se de “algum novo tipo de norte”.
E solda tudo com uma fábula sobre um casal que só se divorcia após os 90 anos de idade. “Nós queríamos esperar até que as crianças morressem”, explicam os pais das crianças, inventores dos próprios problemas, ratos da própria ratoeira. Homeland conta uma única e aterradora história, do início ao fim.
Em The Lake, a artista canta os fantasmas da figura paterna, que se misturam em nossa cabeça com o violino, com a voz masculina do alter ego, com a voz feminina do cantor Antony Hegarty (no final de Another Day in America), com o bigode da capa, com o norte da América (do Norte). Não, não devem ser mera coincidência a presença aguda dos sons mouros em Homeland, e essas trocas de sinais entre Ocidente e Oriente, masculino e feminino, norte e sul. Como já disse alguém, às vezes o norte não fica no norte.
(E, por falar em sul e norte, ao contrário de seu marido, Lou Reed, que desistiu de comparecer à Flip de 2010 em Paraty, meses atrás Laurie Anderson andou cá pelo Brasil, incógnita, fazendo sabe-se lá o quê.)
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