Já tinha passado de meia noite quando minha filha dormiu. Sentei no chão do banheiro com um pedaço de bolo e uma caneca de boldo. Dizem que é bom pro fígado. Eu, que não bebo nem fumo, estou com o órgão sobrecarregado de raiva, das notícias indigestas que engulo diariamente. Administrar o doce e o amargo, finalmente sozinha, no fim do dia, no chão do banheiro. Encontrar a alquimia que transmute dor em potência, sem nos rasgar.
Você também tem se anestesiado pra ficar de pé?
Então segura minha mão e, olha, a gente pode até cair, mas vamos fazer um pacto de que eu te ajudo e você me ajuda a levantar. A gente tem que estar vivo e pra isso a gente tem que sobreviver, mas também tem que ter sangue nas veias, pulso e pulsão. Está tudo bem ter sangue nos olhos também, a gente só não pode se cegar. A desumanização começa quando a gente se aliena do próprio corpo, com suas emoções e sentidos.
Alien, alienígena, aliás, é o de fora, o estrangeiro – está na origem da palavra. Indígena é o de dentro – o natural de um lugar. E aí eu me dei conta de que: é questão de vida ou morte a gente defender o indígena.
Tem o indígena que vive em mim e que é seiva mesma do que sou. A alma domiciliada, o aqui-agora que não se alheia (aliena). Eu entro em contato com minhas emoções mais profundas. Eu as reconheço e aceito. A tarefa de me desanestesiar, de voltar a morar em mim, contra um mundo que tenta, a todo momento, nos embotar os sentidos. É preciso defender meu eu-indígena. É urgente que ele viva para que eu viva.
Mas também: é preciso defender o indígena que é o outro sem ser o alien. O indígena que sempre esteve nessas terras, que, inventadas fronteiras e bandeiras, agora chamamos de país. Aqueles que são os verdadeiros anfitriões, mas que sabem que somos todos hóspedes desse colo de terra que nos dá o chão e o alimento. É preciso defender o Xavante, o Yanomami, o Mebengokré. O Guarani, o Macuxi, o Yawalapiti. O índio, que não é um só, mas vários povos. O outro do outro, que somos nós, os alienígenas. Fomos nós que invadimos o mundo deles, né? Mesmo que você pense que não tem nada com isso porque nasceu há apenas trinta anos e tudo já seguia sendo enquanto você bebia água da torneira e comprava um hambúrguer na esquina.
Gabriel Paiva/Fotos Públicas
É preciso defender meu eu-indígena e urgente que ele viva para que eu viva
Nós, alienígenas, estamos matando a Terra, planeta-mãe, domicílio. Nosso sistema econômico é por princípio contrário a tudo que é vida. E ele engole a água, seca seus leitos, envenena seu fluxo, o solo, o fruto. Ele engole a floresta com fogo pra botar boi e grão que não alimenta. Ele engole a vida pra arrancar minério, matéria mineral, pra manter a roda girando. E a roda gira e atropela muitos, quase todos, pois é disso que se trata.
Há mais de 500 anos que os matamos, sucessivamente, em nome de quem? Há mais de 500 anos que eles morrem e vivem e vivem de novo, mas morrem muito, os indígenas. Não foi só há 500 anos, é hoje também.
É de hoje e é de ontem que os matamos em nome do deus-dinheiro representado por um livro-bíblia em que um homem negro e socialista chamado Jesus é trocado por um de olhos azuis que diz que bandido bom é bandido morto e que nunca nunca aponta os verdadeiros bandidos da terra e da vida. Os verdadeiros bandidos, nós somos seus capangas. Triste sina. Como penso ser triste a mulher indígena que conheci anos atrás, em uma manifestação feminista, que se dizia ativista indígena, para, anos depois, ganhar dinheiro e notoriedade agindo contra os seus, em nome do outro, o pior.
Olha nossas mãos manchadas de sangue, de toda terra que não foi demarcada. Nós permitimos isso. E nós vemos, com um sentimento colossal de impotência, um vírus arrasar-lhes as aldeias. E permitimos também. Estamos todos morrendo, é verdade. Mas os indígenas, eles morrem de nós. Das nossas doenças. E nós, também, nós morremos de nós.
O capitalismo é uma doença. A exploração do homem pelo homem é uma doença. A exploração da mulher pelo homem é uma doença. A exploração dos bichos, das plantas, dos minerais, pelo insaciável homem.
Pode saber: quando o último índio cair, todos nós caímos juntos. É o indígena quem guarda aquilo sem o que nada é. O equilíbrio das coisas de dentro. A floresta de pé.
Pois então. A gente tem se anestesiado pra não desabar, confundindo isso com viver, não é mesmo?
Mas toma um gole dessa xícara amarga. Dizem que faz bem pro fígado e, sabe, a gente precisa da raiva. A gente precisa acordar dessa anestesia geral, generalizada, acordar talvez para a grande fúria.
Eu quero a Fúria ancestral de um país-Bacurau.