Cercado de grandes expectativas, o encontro da OTAN realizado em julho em Vilnius, na Lituânia, foi desapontante. A Ucrânia e seus apoiadores mais fervorosos acreditavam que a miragem brilhante da adesão poderia finalmente se materializar.. A linguagem superlativa utilizada para descrever o encontro – “a reunião mais importante para a aliança na história moderna”, “os planos de defesas mais abrangentes desde o fim da Guerra Fria” – sugeria aspirações das mais otimistas. Refletindo sobre o atual conflito na Europa, os líderes de Estado invocaram em seus discursos as guerras mundiais do século XX: uma luta pelo continente, pelo Ocidente e pela democracia em si. Mas por trás das fotografias alegres e das frases de efeito autocongratulatórias, escondia-se um fato inegável: a OTAN só está capacitada para se envolver em um esforço de guerra limitado e restrito. Até o momento, essa desconexão entre a retórica e a realidade tem se mostrado estável. Mas com as forças ucranianas e russas travadas num impasse amargo e com as fraturas se abrindo entre um Ocidente supostamente unido será que a situação permanecerá assim?
Para os apoiadores da expansão da OTAN, o encontro começou de forma brilhante. Na véspera do evento, fora anunciado que a Turquia havia finalmente aprovado a adesão da Suécia ao bloco – que até então estava barrada pelo país devido a seu suposto apoio ao “terror curdo”. A notícia da aprovação foi recebida com aclamação e parecia um ótimo presságio para Kiev. Mas no dia 11 de julho, Erdoğan pareceu ter mudado de opinião, emitindo um “esclarecimento” no qual declarou que seu governo precisaria, examinar a implementação da legislação sueca sobre terrorismo antes de tomar sua decisão final, o que poderia acontecer somente durante a próxima reunião do parlamento turco, em outubro. Nos dias que antecederam a cúpula, Biden tentou vincular o recebimento dos tão cobiçados F-16s pela Turquia a um acordo para que o país abandonasse suas objeções à adesão da Suécia; mas, para tanto, Biden precisaria da autorização dos comitês de Relações Exteriores da Câmara e do Senado, o que pode não acontecer. Em meio a este cenário, Erdoğan começou a falar da perspectiva de reavivar os planos há muito paralisados de adesão da Turquia à União Europeia: “primeiro abram caminho para a adesão da Turquia à União Européia e então abriremos o caminho para a adesão da Suécia, assim como fizemos com a Finlândia”. Alguns dizem que a Turquia poderia ter seu candidato nomeado para um cargo importante de contraterrorismo na OTAN, em um quid quo pro para sinalizar que suas preocupações com o “terrorismo” estão sendo levadas a sério.
Os Estados membros já tinham demonstrado a sua disposição de se curvarem para agradar Erdoğan. Em 6 de julho, um tribunal sueco tomou a decisão inédita de condenar um membro do Partido dos Trabalhadores do Curdistão. Ele cumprirá uma pena de quatro anos e meio de prisão na Suécia, antes de ser extraditado para a Turquia. Entre a grande diáspora sueco-curda, o caso foi visto como uma manobra política: mais um sacrifício humano no altar da OTAN. A capacidade aparentemente ilimitada de acomodar a Turquia autocrática é, evidentemente, difícil de conciliar com o atual enquadramento do confronto com a Rússia, como uma luta civilizacional entre um grupo esclarecido de democracias ocidentais e o despotismo oriental de Putin.
A “Concepção Estratégica da OTAN de 2022”, divulgada em Madrid, afirma que “atores autoritários desafiam nossos interesses, valores e nosso modo de vida democrático” – mas isso se refere somente a “países autoritários” que não fazem parte da OTAN, não aos que estão dentro dela. Resta saber se a aliança atlântica conseguirá manter sua atual popularidade enquanto renúncia a qualquer pretensão de “valores compartilhados”. Em 2014, documento político do Centro Norueguês pela Integridade do Setor de Defesa alertou que “se a OTAN não for vista como uma comunidade de valores, a adesão popular e solidariedade mútua ao bloco podem facilmente ser comprometidas”.
A grande decepção do encontro realizado em Vilnius foi, no entanto, a notícia de a Ucrânia não receberia um prazo para uma eventual adesão. Os EUA e a Alemanha manifestaram oposição à ideia da adesão, o que significa que esta nunca foi uma possibilidade concreta. Mas ela foi tratada como tal pelos grandes meios de comunicação, que elevaram as expectativas a um patamar impossível, o que foi repetido por Zelensky. Em vez de criar um caminho para a adesão ucraniana, a aliança aprovou um “pacote de três etapas para aproximar a Ucrânia da OTAN”, incluindo um “programa de assistência plurianual para facilitar a transição das forças armadas ucranianas dos padrões da era soviética para os padrões da OTAN”, a criação de um novo Conselho OTAN-Ucrânia (onde a Ucrânia e a OTAN se “reunirão em condições de igualdade”) e a reafirmação de que a Ucrânia se tornaria membro um dia, juntamente com a dispensa do requisito do Plano de Ação para a Adesão (MAP). O comunicado da OTAN declara que “estaremos em posição de estender o convite à Ucrânia para aderir à Aliança quando os aliados estiverem de acordo e as condições forem atendidas”. Naturalmente, não há qualquer explicação sobre quais seriam essas condições. O que foi concedido à Ucrânia é algo semelhante ao chamado “modelo de Israel”: uma combinação de “vendas de armas, compromissos de segurança e treino militar”. Para os críticos, isto não passa de uma tentativa dissimulada de apresentar o fornecimento de armas como algo mais grandioso do que é. Como disse o teórico de relações internacionais Patrick Porter: “O que a OTAN está dizendo à Ucrânia é: ‘achamos que vale a pena lutar por vocês no futuro, mas não achamos que valha a pena lutar por vocês agora, quando já foram invadidos’”.
UK Prime Minister / Flickr
Os chefes de Estado da Ucrânia, Reino Unido e Estados Unidos durante a Cúpula da OTAN em Vilnius, em 12 julho de 2023
O próprio fornecimento de armas e equipamento aos ucranianos tem sido gradual e limitado. Faz muito tempo que a Ucrânia deseja receber caças F-16 dos EUA, mas dois meses depois de Biden ter prometido apoio à formação de pilotos ucranianos para utilizarem as aeronaves, ele ainda não aprovou a entrega de manuais e simuladores de vôo; os europeus também não apresentaram um plano de treinamento. Esta abordagem fracionada, em que a Ucrânia recebe um fornecimento constante de armas que, no entanto, fica aquém do que é necessário para fazer diferença significativa no campo de batalha – enquanto as negociações de paz são categoricamente rejeitadas –, é praticamente uma garantia de que a guerra se prolongará por tempo indeterminado. À medida que a guerra se arrasta, sem grandes avanços de ambos os lados, o Ocidente terá cada vez mais dificuldade em conciliar a sua retórica bélica com as suas ações mais hesitantes.
O encontro de Vilnius foi assombrado pelo fantasma de reuniões passadas. Normalmente, os EUA informam os seus aliados sobre os seus objetivos cerca de três ou quatro meses antes do encontro. Mas na reunião de 2008, em Bucareste, Bush fez um anúncio surpresa de que a Ucrânia e a Geórgia deveriam receber a promessa de adesão à OTAN numa data futura (não especificada), com os EUA exercendo pressão para a inserção de ambos os países no MAP. Os observadores mais céticos notaram que esta era a pior mensagem possível: o suficiente para provocar a Rússia, mas não o suficiente para impedi-la de responder. Este ano, as preocupações de que o evento realizado em Vilnius seria uma “Bucareste 2.0” parecem ter sido confirmadas: A OTAN prometeu efetivamente intensificar a guerra sem apressar sua conclusão.
Expressando sua frustração no Twitter, Volodymyr Zelensky escreveu que “é um absurdo sem precedentes que um prazo não tenha sido estabelecido, nem para o convite nem para a adesão da Ucrânia”. Seu desabafo expõe uma característica curiosa sobre o atual bloco de poder do Atlântico. A hegemonia norte-americana foi, de certa forma, rejuvenescida pela invasão russa com o governo Biden encurralando seus deputados europeus a um conflito prolongado. No entanto, a visão hegemônica e a perspicácia geopolítica dos EUA ainda deixam muito a desejar. As declarações de “unidade ocidental sem precedentes” podem ter parecido críveis durante o primeiro ano da guerra, mas as rachaduras parecem cada vez mais difíceis de ignorar. Assim como Bush, a geoestratégia de Biden está expondo divisões latentes na aliança militar.
É claro que, para muitos que compõem o aparato de segurança dos EUA, os acontecimentos na Ucrânia parecem ser uma distração inútil frente à questão mais urgente da ascensão chinesa. Em 2022, a aliança militar publicou a sua concepção estratégica designando a República Popular da China como um “desafio sistêmico”. O comunicado deste ano também reproduziu essa retórica: “as ambições declaradas e as políticas coercitivas da República Popular da China desafiam os nossos interesses, segurança e valores”. As nações “A4” – Coreia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia – são um novo elemento desta agenda e, em junho, aviões da Força Aérea Japonesa participaram do “maior exercício aéreo realizado pela OTAN desde a sua criação”. A reunião de Vilnius também deu origem ao “Programa de Parceria Individualmente Personalizado entre a OTAN e o Japão para 2023-2026”, que prevê o reforço da parceria entre o Japão e a OTAN numa série de “questões prioritárias”, incluindo a defesa cibernética, as tecnologias emergentes e disruptivas e a segurança espacial. No entanto, os planos para abrir um gabinete de coordenação da OTAN no Japão foram interrompidos no início deste verão após a resistência dos Estados membros, com Emmanuel Macron tendo descrito a ideia como “um grande erro”. Evidentemente, vários países que se alinharam aos EUA em relação à Ucrânia estão relutantes em fazer o mesmo quando se trata da China. Países da Europa Central e do Leste Europeu continuam com sua postura agressiva, mas grande parte da Europa Ocidental, temendo as consequências econômicas da “dissociação” da RPC, tem seguido uma política mais suave de “redução de risco”.
O encontro de Vilnius ergueu o véu que pairava sobre a unidade ocidental invocada desde fevereiro de 2022. Tal unidade funciona somente até um determinado ponto: os aliados estão unidos em oposição à invasão russa, mas, para além disso, há várias áreas de discórdia – , embora seja extremamente difícil de perceber isso devido à imensa campanha midiática e sua retórica autossatisfatória. Na bolha atlantista de informações, o Exército ucraniano está sempre à beira de um avanço, a recaptura da Crimeia é sempre iminente e a vitória está próxima. A realidade, no entanto, é que a OTAN parece mais interessada em vencer a guerra de relações públicas do que a guerra real.
(*) Lily Lynch é escritora, colaboradora da New Statesmen e co-fundadora e editora da Balkanist
(*) Tradução de Raul Chiliani