Soube no sábado (28/12) à noite que o câncer contra o qual se tratava já há uns cinco anos levou à morte Nilcea Freire.
Conheci Nilcea em 1994. Ela era diretora de Planejamento na Uerj e eu era estudante. Durante os seis anos que passei na Universidade que me ensinou muito mais que uma profissão, briguei irreconciliavelmente com Nilcea. Ela, militante ativa do PT, e eu ingressei logo no segundo semestre no movimento estudantil e no PSTU, fui conselheira universitária e, posteriormente, de ensino e pesquisa.
Depois ela virou vice-reitora e, na sequência, a primeira reitora mulher da Universidade.
Ocupação à reitoria para nós do DCE à época era quase uma disciplina da grade curricular. Perdi as contas de quantas vezes cobramos bandejão, voto universal para eleição do corpo dirigente da universidade, inversão das prioridades nos investimentos. Certa vez a PM foi convocada para retirar a nós, estudantes, do corredor. Não hesitamos em denunciar fortemente no Jornal do DCE – que eu editava. Chegamos a compará-la ao então presidente FHC (lembro-me de brigar com um companheiro querido, petroleiro, que tentava nos mostrar que era uma comparação esdrúxula).
Continuamos brigando até minha saída da Uerj, em 2000. Um semestre antes, a médica Nilcea foi uma das pessoas fundamentais para que minha mãe, vítima de um AVC na época, esteja viva hoje.
Em 2010 nos cumprimentamos educadamente durante o último debate presidencial, na TV Globo. Mais uma vez estávamos em oposição. Eu assessorava o saudoso Plínio de Arruda Sampaio, candidato do PSOL, e ela, ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no governo Lula, acompanhava a comitiva da então candidata Dilma Rousseff.
Em 2015, passada uma década e meia de nossas divergências na Uerj, nos reencontramos pela primeira vez em meu local de trabalho. Ela já estava na Fundação Ford e tratando a doença. Olhou-me e disse, simpática: “Eu conheço você!” Eu: “Sim, Uerj, 94-2000”. E ela sorriu e exclamou: “Luciana, do DCE!” E contou à minha então chefe que, “quando menina, ela era uma pestinha! Ocupava a reitoria todo dia!” Ao ser lembrada assim, acho que cumpri meu papel como representante estudantil. Rimos todas. Deu-se enfim a quebra do gelo.
Ali, Nilcea já era uma mulher a quem eu respeitava muito.
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Foi ainda durante sua gestão como reitora que foram implantadas, pela primeira vez no país, as cotas raciais na universidade. O ME inicialmente era contra, mas a realidade mostrou-se mais forte e a política, corretíssima. Foi quando começou a minha ruptura com o PSTU.
À frente da SPM-PR, ela foi fundamental para a aprovação da Lei Maria da Penha e para a Política Nacional que trouxe direitos e garantias que as brasileiras não tínhamos ainda consignados. Sempre navegando um orçamento muito menor que o necessário, mas o que se avançou no combate à violência estrutural contra as mulheres nesse país vem daí. Não fosse isso estaríamos numa situação ainda pior.
Ainda brigamos muito, especialmente quando em 2009 o Brasil lançou o programa “Mãe Cegonha” e assinou a Concordata com o Vaticano.
Em 2016 nos vimos duas vezes em eventos sobre o impacto do zika vírus sobre as vidas das mulheres, especialmente das nordestinas e negras – 80% das vítimas. Em abril daquele ano, soubera que ela estava ingressando no PSOL, legenda pela qual foi candidata à vereança. E lá estávamos, nas voltas da vida, cabendo no mesmo projeto partidário.
Por que escrevi tudo isso hoje? Porque fiquei triste quando soube que ela estava doente, e ao saber de sua morte. Mas principalmente porque reconhecer as contribuições das pessoas de quem divergimos na maior parte da vida, e reconhecer que é possível que as pessoas mudem e as mudanças nos aproximem, parece-me importante – especialmente em tempos como o que vivemos.
O legado de Nilcea para a luta antirracista e o enfrentamento à violência contra as mulheres deve ser reconhecido. E por isso hoje digo, sem hipocrisia e sem vacilar: Nilcea Freire, PRESENTE!