A globalização enfraqueceu os regionalismos. Somos “do mundo todo”, mas, para isso, não somos “de nenhum lugar específico”. Particularidades, hoje, afastam; similitudes aproximam, a ponto de nos homogeneizarem até demais… Há pouco tempo, era diferente. Há algumas décadas, quero dizer. E tão diferente que agora não conseguimos entender direito… Estou falando da segunda metade do século XX e da aproximação que sentíamos, aqui no Brasil, da América Latina. Hoje, por exemplo, estamos mais próximos de Rússia, Índia e China (a fim de compor os tais BRICs) do que de nossos vizinhos.
Entre os anos 60 e 70, havia um poeta brasileiro que podia nos transmitir esse sentimento perdido: de ser latino-americano e ser do Brasil. Ainda pode, na verdade. Trata-se de Manoel de Andrade, que teve o seu Poemas para a Liberdade lançado, recentemente, em edição bilíngue (pela Escrituras Editora). Numa época como a nossa, em que artistas brasileiros almejam se lançar no exterior, Andrade escreveu poesia para toda a América Latina. Ecoou o sentimento do homem latino-americano, a partir do Brasil, e percorreu o continente, num autoexílio de provação e, ao mesmo tempo, de consagração.
O apelo à coletividade ecoa já no princípio, em “Canción para los hombres sin rostro”, poema escrito em setembro de 1968, em Curitiba. Manoel fala em mártires: “Yo he de morir para que tú no mueras”. Fala de outsiders: “Canto a los parias de la vida” (“Canto a los hombres sin raíces, sin familia, sin patria”). E se espanta, obviamente, com os anos de chumbo: “Ah, que tiempos son esos?”. Entregando, finalmente, sua produção a todos: “Mis versos que al final nunca serán de nadie”. Dentro do contexto de triunfo do indivíduo a que chegamos, atualmente, com mais falantes do que ouvintes (por exemplo, nas novas mídias), fica quase impossível entender como alguém podia abrir mão do que escrevia, preferindo soltar poemas apócrifos, diluindo-se no sentimento geral.
As palavras de Manoel de Andrade rodaram a América Latina, sendo republicadas em periódicos de quase todos os países, mas não porque ele apostasse em “marketing pessoal”, fizesse “marketing viral” ou fortalecesse “sua marca” – e, sim, porque preferia não assinar, para ser mais simpático à causa de todos; porque, nesse esforço de identificação, todos o repassavam de bom grado; e porque, sem interesse, ele transcendeu suas limitações pessoais.
“Portunhol selvagem”
Em “Que es la poesia… mi hermano?”, ao afimar “es el amor hecho fuego”, Manoel se aproxima do nosso contemporâneo Douglas Diegues, que, neste momento, prega, além do “portunhol selvagem”, a “poesia feita com esperma”. Fora coincidências como essa, que não poderia jamais prever, Manoel de Andrade se aproxima de antecessores consagrados, como Fernando Pessoa, em “Mensaje” (dirigindo-se profeticamente ao futuro): “Vosotros que aguardáis la vida en el vientre de los siglos”. Evocando Pessoa, outra vez (mais especificamente Bernardo Soares, do Livro do Desassossego), em “El sueño del sembrador”: “Es necesario hacer del sueño la última trinchera”. E, naturalmente, traçando paralelos com o universal Che Guevara, em “Réquiem para um poeta guerillero”.
Em entrevistas, inclusive, Manoel reconheceria: “Por ahora creo que soy más necessario en la poesía que en outro tipo de lucha”. Lemos, ainda, que “poesía comprometida” se opunha então à chamada “poesía de consumo” e percebemos que, apesar de todas as aproximações que podemos fazer através da forma, há um abismo entre a produção de agora e a de antes, por um simples motivo, o do engajamento (ou da falta dele): “Los nuevos poetas del continente [nos anos 60 e 70]… han sabido comprometer sua poesia con la época que les toca vivir”.
Nem tudo são rosas na trajetória e na produção de Manoel de Andrade, contudo. Em El marinero y su barco, escrito em Lima, em 1969, ele deixa escapar: “Si, hay cosas tristes en la vida”. E, abordando o autoexílio (que infelizmente não detalha muito no livro), registra ainda entrevistas que acrescentou ao volume (como “fortuna crítica”): “Las acusaciones contra Manoel de Andrade se resumen en una: hace versos”. Em Canto a los marginales, parece falar a si próprio: “Donde están tus fariseos y las piedras que te lanzaron?”. E, num momento de desespero, volta-se, mais uma vez, a Guevara: “En cualquier lugar que nos sorprenda la muerte, bienvenida sea”.
Esquecido
Mas a principal tragédia de Manoel de Andrade não foi, artisticamente, a perseguição ou mesmo a ameaça de morte física. Foi o esquecimento nestas últimas décadas (no Brasil): “De celebrado autor de libros por el continente, se resignaba a ser un modesto vendedor de enciclopedias”. Os anos de chumbo se consolidaram nos 70 e desembocaram, finalmente, na abertura, a partir dos 80, mas o poeta não conheceu, novamente, a consagração de antes, nem teve a oportunidade de ser resgatado, como autor. Fala com distanciamento hoje, 40 anos depois, em sua primeira edição desde o auge.
Poemas para a Liberdade, em suma, deve ser lido menos como uma curiosidade de uma época distante, que se afastou do próprio autor com o passar dos anos, e mais como uma realização, legitimamente autoral, que transcendeu as fronteiras e alcançou o que muitas obras não alcançaram, com toda a eficiência posterior das comunicações. Dizem que o que nossa época perdeu em matéria de “sonho”, ganhou em matéria de “realidade”, mas é o caso de perguntar, talvez a Manoel de Andrade, se é este o “futuro” com que se sonhou e, principalmente, se estamos sendo dignos dos que lutaram a fim de que desfrutássemos dessas liberdades todas.
O pós-modernismo nos roubou o senso histórico. Podemos não cair em armadilhas utópicas e totalitarismos, mas, ao mesmo tempo, guardamos no íntimo a sensação de não estar dialogando o suficiente com os problemas do novo milênio… É tudo menos “monolítico” hoje, as opiniões não são mais “a favor” ou “contra”, mas, apesar desta nova consciência, o sentido (e a força) de um desejo de transformação evaporou-se. Manoel de Andrade, como nós, não deve entender o que está acontecendo, mas seu Poemas para a Liberdade pode nos mostrar, ao menos, diferenças inquietantes do sentimento de ser brasileiro e de ser latino-americano.
* Julio Daio Borges é editor-fundador do site Digestivo Cultural
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