Quando os tumultos eclodiram na França no final de junho, a polícia levou pouco menos de uma semana para prender mais de 3 mil pessoas. Os confrontos nas ruas de Paris e Marselha nos fizeram lembrar de outros confrontos recentes com as forças de repressão do Estado: pensemos nas 22 mil prisões realizadas pela polícia iraniana no outono do ano passado, ou nas 10 mil pessoas detidas nos EUA durante o verão de protestos do movimento Black Lives Matter. O que é que estas três revoltas, em três continentes diferentes, têm em comum? O primeiro fator em comum foi a idade e a classe social dos manifestantes. A maioria das pessoas detidas tinham menos de 30 anos e uma parte desproporcional era composta por “nem-nems” (pessoas que não estudam, não trabalham e não estão em treinamento). Na França e nos EUA, esta característica está associada ao fato de serem minorias raciais: 26% da população jovem das zonas urbanas sensíveis são “nem-nems”, em comparação com uma média nacional de 13%, enquanto os afro-americanos são quase 14% da população geral dos EUA, mas representam 20,5% dos “nem-nem”. No Irã, entretanto, o fator decisivo foi a idade: os jovens viveram toda a sua vida sob as sanções dos EUA. Números recentes mostram que cerca de 77% dos iranianos com idade entre os 15 e os 24 anos se enquadram nesta categoria – o que representa um aumento de cerca de 31% em relação a 2020.
O segundo fator comum é ainda mais chocante. Nos três casos, os protestos eclodiram em consequência de um assassinato cometido pela polícia: George Floyd, um afro-americano, foi morto em Minneapolis em 25 de maio de 2020; a jovem curda Mahsa Amini, de 22 anos, em Teerã, no dia 16 de setembro de 2022; e Nahel Merzouk, de 17 anos, de ascendência argelina, em Nanterre, no dia 27 de junho. Após estas mortes, os holofotes da grande mídia incidiram sobre os “vândalos”, “bandidos”, “hooligans” e “criminosos” que haviam saído às ruas, mas raramente sobre as forças de repressão. No Irã, a identidade do policial que matou Amini nem sequer foi revelada. Na França, o porta-voz de Éric Zemmour – figura proeminente da extrema-direita francesa – lançou uma campanha de arrecadação de fundos para apoiar o policial que matou Nahel, chegando a recolher mais de 1,6 milhões de euros em doações antes de ser retirada do ar.
Um terceiro fator liga os protestos e sua respectiva repressão aos distúrbios em outros países: uma repetição monótona. O contexto é sempre o mesmo: lojas destruídas, carros queimados, alguns supermercados saqueados, gás lacrimogêneo e ocasionalmente uma bala da polícia. No Ocidente, a fórmula é a mesma há décadas: a polícia mata um jovem de uma comunidade marginalizada; os jovens dessa comunidade revoltam-se; eles destroem algumas coisas e entram em confronto com a polícia e então são presos. A atmosfera retorna a uma espécie de tranquilidade, até que a polícia decida assassinar alguém novamente. (Os protestos do Irã no ano passado foram a primeira grande revolta contra a violência policial no país – um sinal de que até a terra dos aiatolás está aderindo à “modernidade ocidental”).
A França tem um longo histórico de casos desse tipo. Para dar apenas alguns exemplos: em 1990, um jovem com paralisia, chamado Thomas Claudio, é morto nos subúrbios de Lyon por um carro da polícia; em 1991, um policial dispara e mata Djamel Chettouh, de 18 anos, numa zona periférica de Paris; em 1992, de novo em Lyon, a polícia dispara e mata Mohamed Bahri, de 18 anos, por tentar fugir de uma blitz de trânsito; no mesmo ano, na mesma cidade, Mourad Tchier, de 20 anos, é morto por um brigadeiro-comandante da polícia; em Toulon, em 1994, Faouzi Benraïs sai para comprar um hambúrguer e é morto pela polícia; em 1995, Djamel Benakka é espancado até à morte por um policial numa delegacia de polícia de Laval. Avancemos: os protestos de 2005 foram uma resposta à morte de dois adolescentes, Zyed Benna (17 anos) e Bouna Traoré (15 anos); os protestos de 2007 pediam justiça pela morte de mais dois jovens, Moushin Sehhouli (15 anos) e Laramy Samoura (16 anos), mortos após a moto em que os dois estavam colidir com uma viatura da polícia. A lista é intolerável: bastaria recordar a morte de Aboubacar Fofana (22 anos) em 2018, morto pela polícia em Nantes durante uma abordagem rotineira. Nota-se como os nomes das vítimas são típicos: Aboubakar, Bouna, Djamel, Fauzi, Larami, Mahaed, Mourad, Moushin, Zyed…
O mesmo roteiro pode ser encontrado do outro lado do Atlântico. Miami, 1980: quatro policiais brancos são acusados de espancar até a morte um motoqueiro negro, Arthur McDuffie, após ele ultrapassar um farol vermelho. Eles foram absolvidos, ocasionando uma onda de tumultos que abalaram Liberty City, resultando em 19 mortes e 300 feridos. Los Angeles, 1991: quatro policiais brancos espancaram outro motoqueiro negro, Rodney King. Como consequência, protestos abalaram a cidade e 2,3 mil pessoas ficaram feridas, enquanto 59 pessoas morreram. Protestos se espalharam por Atlanta, Las Vegas, Nova Iorque, São Francisco e San Jose. Cincinnati, 2001: a polícia mata um jovem negro, Timothy Thomas, de 19 anos, gerando ondas de protestos que resultaram em 70 feridos. Ferguson, 2014: um policial branco assassina Michael Brown, um jovem negro de 18 anos; protestos, 61 prisões e 14 feridos. Baltimore, 2015: um homem negro de 25 anos morre em consequência de diversos ferimentos após ser mantido preso dentro de uma van policial; confrontos deixam 113 policiais feridos, duas pessoas foram baleadas e 485 pessoas foram presas. Um toque de recolher é imposto após a intervenção da Guarda Nacional. Charlotte, 2016: a polícia atira em Keith Lamont Scott, homem negro de 43 anos; protestos, toque de recolher, mobilização da Guarda Nacional. Um manifestante é assassinado durante os protestos, Justin Carr, de 26 anos; 31 manifestantes ficam feridos. Finalmente chegamos a George Floyd, onde o cenário se repete.
A polícia britânica não tem motivos para sentir-se inferior aos seus colegas transatlânticos, nem aos seus vizinhos do outro lado do Canal da Mancha. Alguns exemplos, dentre tantos; Brixton, 1981: brutalidade e perseguição policial em protestos em comunidades negras; 279 policiais e 45 civis foram feridos (manifestantes evitavam ir aos hospitais por medo), 82 prisões, mais de 100 veículos queimados, 150 prédios danificados com um terço deles incendiados. O motim se espalha até Liverpool, Birmingham e Leeds. Brixton, 1985: a polícia entra na casa de um suspeito e atira em sua mãe, Cherry Groce. Um fotojornalista é morto, 43 civis e 10 policiais feridos, 55 carros incendiados e um prédio completamente destruído após três dias ininterruptos de protestos (Cherry Groce sobreviveu, mas ficou paralítica). Tottenham, 1985: uma mulher negra, Cynthia Jarrett, morre de parada cardíaca durante uma busca domiciliar feita pela polícia – um policial é morto por uma multidão nos tumultos resultantes. Brixton, 1995: protestos após um homem negro de 26 anos morrer em custódia; 22 prisões. Tottenham, 2011: a polícia atira e mata Mark Duggan; protestos eclodem e se espalham para outras áreas de Londres e depois para outras cidades. Pelos seis dias que se seguiram após sua morte, 5 pessoas morreram, 189 policiais feridos e 2.185 prédios foram danificados. Beckton, 2017: Edson Da Costa, um português de 25 anos, negro, morre por asfixiação após ser parado pela polícia. Em protestos subsequentes em frente à delegacia de polícia, 4 pessoas foram presas e 14 policiais feridos.
U.S. Marine Corps
Fuzileiros navais norte-americanos durante treinamento
Imagino que tenha sido exasperante ler essa lista, tanto quanto foi enfurecedor escrevê-la. Nesta altura, a violência policial não deve ser considerada uma bavure (“erro”, em tradução livre), como os franceses dizem, mas uma característica transnacional contemporânea do capitalismo (Isso nos traz à mente Bertolt Brecht, que, diante da reação do governo da Alemanha Oriental aos protestos realizados em 1953, questionou: “não seria mais simples o governo dissolver o povo e eleger um novo?”). O que é mais surpreendente é que após cada um destes protestos, milhares de urbanistas, sociólogos, “especialistas em jovens”, criminologistas, profissionais de saúde, instituições de caridade e ONGs se voltam, em sua contrição, às profundas causas sociais, culturais e comportamentais de tal “violência”, “vandalismo” e “excessos” dos manifestantes. A polícia, por outro lado, não recebe a mesma atenção. A violência policial é frequentemente retratada, mas raramente analisada. Nem mesmo Foucault aprimorou nossa compreensão sobre ela, focando, em vez disso, em locais específicos onde a aplicação da lei é organizada e institucionalizada.
O policiamento claramente evoluiu ao longo dos séculos: foi subdividido em corporações especializadas (tráfego, cidade, fronteira, militares e polícia internacional) e suas ferramentas foram aperfeiçoadas (escutas telefônicas, rastreamento e vigilância eletrônica). Mas a polícia manteve tanto sua opacidade quanto sua irreformabilidade. Os países mencionados acima nunca colocaram em pauta reformas policiais significativas. Nenhum dos seus governos jamais promoveu uma alternativa – por que um regime iria querer alterar seu instrumento disciplinar mais eficiente? Tampouco os tumultos, motins e agitações conseguiram provocar mudanças. Ao contrário, parece que a raiva popular é um fator de estabilização, uma válvula de segurança para a panela de pressão social. Em última análise, ela reforça a imagem que os poderosos têm da população. Nas Histórias de Heródoto, escritas no século V a.C, o nobre persa Megabyzus afirma: “não há nada tão desprovido de entendimento, nada tão cheio de libertinagem, como a multidão descontrolada. Seria uma loucura insustentável que os homens, ao procurarem escapar à arbitrariedade de um tirano, se entregassem à arbitrariedade de uma multidão rude e desenfreada. O tirano, em todas as suas ações, pelo menos sabe o que está fazendo, mas uma multidão é totalmente desprovida de conhecimento; pois como poderia haver qualquer conhecimento em uma multidão, sem instrução e sem senso natural do que é certo e adequado? A multidão lança-se descontroladamente nas questões do Estado com toda a fúria de um riacho que inunda no inverno e confunde tudo.”
Do ponto de vista de um regime, é bem possível que os motins sejam positivos, pois garantem a renormalização, permitem que os “bantustões” sociais permaneçam como tais e sirvam como atenuantes de descontentamentos que, se fossem expostos de outra maneira, poderiam ser perigosos. Naturalmente, para que desempenhem esta função estabilizadora, eles devem ser alvo de condenação aberta: o vandalismo deve ser denunciado, a violência deve suscitar indignação e os saques devem causar repulsa. Estas condenações justificam a crueldade da repressão, que torna-se o único meio de impedir o avanço da onda de barbárie. É nessas condições que os tumultos servem para ossificar a hierarquia social.
Não podemos deixar de recordar as revoltas populares que abalaram o Antigo Regime e que foram reprimidas regularmente e sem piedade: a Grande Jacquerie de 1358 (que deu origem ao nome comum de todas as revoltas camponesas posteriores), a Revolta de Tuchin em Languedoc (1363-84), a Revolta de Ciompi em Florença (1378), a Rebelião de Wat Tyler (1381), a Guerra Camponesa na Alemanha (1524-6), o Carnaval de Romans (1580) e a Revolta de Masianello em Nápoles (1647). O historiador Samuel Cohn contou mais de 200 destes casos na França, Flandres e Itália de 1245 a 1424. Mas foi o grande historiador Marc Bloch quem observou como o sistema feudal precisava destas revoltas para se manter:
“Um sistema social não se caracteriza apenas pela sua estrutura interna, mas também pelas reações que provoca: um sistema baseado em mandamentos pode, em certos momentos, implicar em deveres recíprocos de auxílio, como também pode levar a manifestações brutais de hostilidade. Aos olhos do historiador, que deve apenas constatar e explicar as relações entre os fenômenos, a revolta agrária parece tão inseparável do regime senhorial como, por exemplo, a greve em relação à grande empresa capitalista.”
A reflexão de Bloch leva-nos à seguinte questão: se a jacquerie é inseparável do feudalismo, e a greve do capitalismo fordista, então a que sistema de comando corresponde o tumulto dos “nem-nem”? Só há uma resposta: um sistema – o neoliberalismo – em que a plebe foi reconstituída. Quem são estes novos plebeus? São os “nem-nem” dos arranha-céus americanos e dos bairros ao sul de Teerã, ou os subproletários das “zonas sensíveis” francesas. Eles constituem a classe que muitos dos chamados “progressistas” de hoje desdenham, temem ou, na melhor das hipóteses, ignoram.
(*) Marco D'Eramo é jornalista. Foi correspondente do Paese Sera e do La Repubblica, além de fundador do Il manifesto e colaborador da The New Left Review.
(*) Tradução de Raul Chiliani