Às vésperas do aniversário de 65 anos do movimento político mais emblemático na reafirmação do desejo latino-americano por emancipação, a Revolução Cubana, e como preparativo para o aniversário de 20 anos do acordo entre Cuba e Venezuela que originou a Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América – Tratado de Comercio de los Pueblos – ALBA-TCP, foi organizado em Cuba um evento para relembrar esta trajetória de duas décadas. Coordenaram a mesa as lideranças cubanas Bruno Rodríguez (Ministro de Relações Exteriores), Rogelio Polanco (dirigente do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba), Fernando González (presidente do Instituto Cubano de Amizade com os Povos) e Sacha Llorenti (ex-embaixador da Bolívia na ONU e ex-secretário executivo da ALBA-TCP).
Neste encontro, realizado em meados do mês passado, foram debatidas alternativas para revitalização da aliança, firmada em Havana entre Fidel Castro e Hugo Chavez, em 14 de dezembro de 2004. Renovou-se o compromisso com uma perspectiva econômica de espírito humanista e social, e uma postura internacional de solidariedade regional pautada na soberania pacífica, respeito à livre determinação e defesa dos princípios e propósitos da carta das Nações Unidas. Quando fala-se em “Tratado de Comercio de los Pueblos” e não “Tratado de Livre Comércio”, a iniciativa deixa claro que busca um modelo alternativo de integração regional, orientado pela aderência com as diferentes identidades dos diferentes povos latino-americanos, que possuem em comum uma essência hibero-africana e originária, já submetida à sangria do colonialismo e do imperialismo.
1. Introdução: paz, unidade, solidariedade e cooperação no desenvolvimento latino-americano
O intuito aqui é lançar elementos para esta revitalização da ALBA-TCP, sobretudo quanto ao seu papel de integração regional caribenha, também em relação à sua trajetória histórica mas, principalmente, quanto à integração econômica. Dentre várias abordagens que podem ancorar esta reflexão, duas que possuem forte sinergia com os objetivos deste bloco regional são a Teoria da Dependência, baseada na relação CENTRO-PERIFERIA, e a do Intercâmbio Desigual. Nesta introdução tomei como referência da primeira um diagnóstico sobre integração latino-americana pedido pelo governo federal brasileiro em 2005 ao Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, sob coordenação de Ricardo Carneiro (Carneiro, 2008), publicado em 2008, e da segunda abordagem um trabalho desenvolvido em 2013 pelo também economista Nilson Araújo de Souza e pela socióloga Luisa Moura (Souza e Moura, 2013), no âmbito da Universidade da Integração Latino-Americana – Unila. Na linha do tempo, ambos situam-se num momento de ascendência da ALBA, observando suas potencialidades e seu significado no âmbito continental.
O projeto “Integração sul-americana” do Centro Celso Furtado foi sintetizado pelo economista Ricardo Carneiro (IE-Unicamp), associado fundador em 2005, que na publicação desta iniciativa em 2008 destaca a ALBA-TCP como uma das três principais iniciativas de integração econômica continental neste início de Séc. XXI, ao lado da então inclusão da Venezuela no Mercosul e a articulação da Unasul. Carneiro diferencia duas concepções opostas de integração regional: a voltada para o livre-comércio, defensora de que a estabilidade de preços e do câmbio induz investimentos privados pautados em vantagens comparativas, altamente influenciado pelo Consenso de Washington, visão que levaria simplesmente a estabelecer novas relações centro-periferia típicas do neoliberalismo para dentro das relações entre os países “integrados” (e todos os seus efeitos perversos); e outra, baseada no “desenvolvimento e comércio estratégico”, organizada a partir da orientação política desenhada através de arranjos institucionais entre os Estados, onde um país de maior poder econômico incentiva os demais, financiando nestes capacidade produtiva do que não produz ou produção de bens intermediários, integrando as cadeias de valor e não apenas facilitando a circulação de mercadorias. As bases macroeconômicas desta regionalização estariam na integração produtiva e financeira, não monetária.
Estas duas abordagens para os processos de integração geraram divergências desde a primeira iniciativa para a regionalização latino-americana, a ALALC (atual ALADI), que ao abraçar o prisma do “livre-comércio” (sobretudo na moderação institucional para acordos bilaterais entre os membros), gerou como reação o surgimento da Comunidade Andina – CAN, de viés integracionista. Esta oposição, que teve seu ápice na resistência contra o estabelecimento da ALCA, também foi o fio condutor do trabalho de Souza e Moura, críticos de uma guinada da CEPAL de uma proposta desenvolvimentista (integracionista) para o chamado “regionalismo aberto”, no qual ganharam força acordos bilaterais que não restringissem outros contratos de livre-comércio com nações desenvolvidas, sob justificativa de atualização tecnológica. Declaradamente tributários do conceito de “intercâmbio desigual” de Ruy Mauro Marini, os pesquisadores da Unila defendem que ao contrário de promover difusão tecnológica, acentua a diferença, de modo que as economias dependentes são levadas a saudar a diferença na capacidade de mais-valia relativa com mais-valia absoluta (aumento da exploração do trabalho), resultando em menores salários, menor poder de compra e aumento da pobreza.
Por resultado, uma integração regional na esfera econômica deveria estar atrelada a uma integração política em sintonia com uma social e cultural (afinal, são vários povos), além da educacional. Não se trataria apenas de um equilíbrio monetário ou aduaneiro, nem mesmo apenas das atualmente chamadas de cadeias de valor, mas de uma arquitetura política com participação social, com o aprimoramento institucional na regulação das atividades econômicas regionais – como aponta Carneiro – e também de penetração social nas decisões políticas, muito além do ideal da democracia liberal representativa, e este é o grande diferencial da ALBA-TCP segundo Souza e Moura. Sendo assim, a próxima seção tratará da constituição sociopolítica da “Alianza”, principalmente pautando-se em pesquisa recente realizada no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina – PROLAM/USP, e suas conseqüências na evolução econômica recente do Caribe.
Na sequência, serão tratados como uma agenda de pesquisa do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais – CERI e um trabalho de pesquisadores do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia – NEIT e do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – CECON, ambos do Instituto de Economia da Unicamp, abordaram a questão das integrações monetária, financeira e produtiva, logo após a publicação do Centro Celso Furtado, em abordagem bastante alinhada a esta. Por fim, lanço mão de um trabalho de 2021 do grupo de Ricardo Carneiro que aponta para uma articulação particular para o Caribe, integrado à articulação geral latino-americana, fundamentado na cooperação produtiva, concluindo com algumas alternativas para o desejo de revitalização da ALBA anunciado em Havana final do ano passado.
2. Integração política: formação da ALBA-TCP
Tomando a compatibilidade entre as proposições do trabalho de Carneiro no Centro Celso Furtado e de Souza e Moura em relação ao papel central do aparato político-institucional na integração regional, começo a discussão sobre este aspecto a partir do trabalho destes últimos, dado que aprofundam como este processo se deu na ALBA-TCP. Eles destacam que desde o tratado entre Cuba e Venezuela de 2004, já instigado por Hugo Chávez na III Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Associação de Estados do Caribe – AEC em 2001, estabeleceu-se uma cooperação pautada na oferta de petróleo venezuelano subsidiado em troca de ajuda cubana nas áreas de saúde, educação e desenvolvimento tecnológico. Como será visto mais adiante, é importante observar que esta parceria entre os dois países ganhou força a partir da crise financeira de 2008, reforçando a hipótese de Marini defendida pelos autores de que os países centrais se interessam pela desintegração da América Latina, e os movimentos de integração ganham força quando as potências econômicas estão incapazes de estimular economicamente a articulação regional.
Uma agenda de pesquisa que aborda como os aspectos políticos e sociais apontados como fundamentais por Souza e Moura é a desenvolvida por Gustavo Menon, professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo – PROLAM/USP. Em dois trabalhos recentes (Menon, 2022; Menon et al, 2022) aprofunda tanto sobre o histórico de aprimoramento institucional da ALBA-TCP quanto seus projetos prioritários. Ele também enfatiza o surgimento desta cooperação internacional como oposição ao projeto da ALCA e ao “regionalismo aberto” de uma forma geral, destacando o papel da Venezuela como propulsora financeira da integração regional já objetivada desde a Revolução Cubana – esta inspiração é inegável, tanto que, já em 1994, antes de ascender ao poder, Chávez foi à ilha caribenha conhecer e começar uma articulação com Fidel Castro. Em publicação de 2022 de coautoria de Menon com 3 alunas do programa de pós-graduação (Martha Rodrigues, Raíssa Lazarini e Letícia Madeira) são identificados quatro eixos de ação da ALBA-TCP: i) Ideológico, discurso e atuação política; ii) social, ajuda financeira para programas sociais e difusão destes; iii) econômico-produtivo e comercial, com a criação de empresas binacionais com atuação em toda a área de abrangência e; iv) financeiro, com a criação do Banco del Alba e de uma moeda de compensação regional (o Sucre).
Desconsiderando o primeiro eixo, onde há um discurso aglutinador e uma atuação política que se reflete nos demais eixos (incluindo o programa de “Cultura, Decolonização e Interculturalidade”), e que o último consiste nos mecanismos viabilizadores de todas as ações, é pertinente concentrar atenções ao que os pesquisadores do PROLAM/USP enfatizam nos projetos sociais e nos econômico-produtivos e comerciais. Na área social, destacam-se projetos de alfabetização em escolas de regime integral e a rede acadêmica em torno de uma universidade dos povos da ALBA, e na área de tecnologia a criação de uma empresa de engenharia de telecomunicações, além de programas de extensão rural. Em saúde, havia a intenção de incentivo à telemedicina para saúde integral e em oftalmologia, complementado pela massificação do esporte. Na área de infraestrutura, prioriza-se o planejamento de um programa de construção de moradias sociais, e na área logística, altamente direcionada para o transporte de petróleo e commodities.
Um aspecto importante para pensar a conexão entre estes programas e a dimensão político institucional é a criação de um Sistema de Apoio à Municipalização, algo totalmente avesso ao senso comum, que sustenta uma tendência à centralização dos governos de viés bolivariano, e exige uma sofisticação considerável de arranjos policêntricos. Uma agenda de pesquisa fundamental para a pretendida “revitalização” da ALBA é uma análise dos investimentos em cada um destes projetos que avalie se houve a parcimônia desejada (eficiência), em que medida os resultados diretos foram atingidos (eficácia) e se geraram externalidades econômicas e políticas consistentes (efetividade); afinal, estes cálculos seriam fundamentais para conciliar “desenvolvimento e comércio estratégico”.
De volta ao eixo “econômico-produtivo e comercial”, pode-se dizer que a principal iniciativa foi a criação da Petrocaribe, em 2005, antes da entrada massiva de novos membros na parceria inicial entre Cuba e Venezuela, conforme detalha outro trabalho de Gustavo Menon publicado no mesmo ano (Menon, 2022). Ela pretendia se expandir em outras duas empresas, a Petroandina-CAN e a Petrosul-Mercosul, formando a PetroAmérica, mas acabou se restringindo à América Central, no âmbito da ALBA-TCP. Nos anos subsequentes foi através da Petrocaribe que os principais investimentos na “Alianza” aconteceram, de modo que a empresa petrolífera gran-nacional, de uma certa forma, aos poucos concentrou o pretendido processo de integração, mesmo tendo sido um grande motivador para entrada de vários países na ALBA. Outro fator, não abordado pela agenda do pesquisador da USP, foi a previamente alinhada articulação institucional estabelecida entre Cuba e o Caricom, chancelado pela ALADI em 2002.
Munida de aparato institucional, o acordo na esfera comercial e produtiva existente entre Cuba e Caricom, e uma fonte de financiamento para integração cooperativa nos moldes acima expostos, proporcionado sobretudo pela Petrocaribe, além do impulso político proveniente pela “onda rosa” da primeira década do século XXI e pelo enfraquecimento estadunidense devido à crise de 2008, pode-se observar uma rápida expansão entre 2008 e 2013. Por ordem de entrada: Cuba e Venezuela (2004), Bolívia (2006), Nicarágua (2007), República Dominicana (2008), Honduras (2008), Equador (2009), Antigua e Barbuda (2009), Granada 2009), San Vicente e Granadinas (2009), Suriname (2012), Haiti (2012), Santa Lucia (2013), San Cristovão e Nevis (2014); ao longo da década de 2010, saíram Equador, Haiti, Honduras e Suriname. Conforme levantamento nos documentos de seus encontros, atualmente possui dez membros plenos, e Haiti, Suriname e Síria como observadores especiais. Importante salientar que no acordo de 2002 entre Cuba e Caricom (A25TM 040, 2002) os países foram divididos em “mais” e “menos” desenvolvidos, sendo que entre os cinco classificados como mais desenvolvidos nenhum é membro da ALBA-TCP (Suriname está neste grupo, mas consta na ALBA como observador), e dos oito classificados como menos desenvolvidos, apenas Belize e Montserra não estão; isso pode ser considerado um indício do quanto esta estrutura institucional foi importante para agregar os países caribenhos em maior vulnerabilidade.
Além do aporte financeiro e da rede institucional que impulsionaram a expansão deste acordo de cooperação, um outro fator parece bastante elucidativo, analisado por Marcos Chiliatto-Leite (2021), sob orientação de Ricardo Carneiro na Unicamp, cuja investigação se falará na quarta seção: a correlação entre as economias caribenhas (MCCA) com Estados Unidos e China. Segue o gráfico comparativo destas correlações:
Enquanto a correlação entre os crescimentos do PIB estadunidense, historicamente influente sobre tais nações, despencou entre 2005 e 2011, neste mesmo período a correlação entre eles com a China ascendeu vertiginosamente a partir 2005, teve seu ápice em 2011 e despencou a partir de 2013. Observe que com exceção de Cuba e Venezuela, fundadores, e de São Cristovão e Nevis, que entrou em 2014, os demais onze países que solicitaram ingresso o fizeram durante este período, e os que saíram o fizeram na medida em que diminuiu a correlação estatística entre o crescimento dos países da região e da China, e aumentou esta correlação com os Estados Unidos. Esta comparação serve como indício importante para explicar o processo de adesões, e reforça a tese de que o enfraquecimento do país central permite uma janela de oportunidade para a integração, defendida por Souza e Moura.
Nas próximas seções serão tratadas com maiores detalhes as condições de cooperação capazes de promover uma integração produtiva a partir da cooperação financeira (que não chega a ser uma integração financeira). A integração produtiva mostra-se um caminho bastante sólido para uma articulação mais estável, dado que promove uma integração das cadeias de valor, com a cooperação comercial de importação e exportação de bens intermediários, promovendo assim um intercâmbio tecnológico e interdependência econômica impossível para acordos exclusivamente pautados em Áreas de Livre-Comércio, e são possíveis mesmo sem integração monetária e financeira.
EneasMx / Wikicommons
Foto oficial da XIV Cúpula extraordinária da ALBA-TCP realizada em Caracas em 2017
3. Integração Econômica da América Latina: aspectos gerais da cooperação financeira
Ponderando acerca da linha política agregadora na integração política da ALBA-TCP, que defende o protagonismo (não necessariamente exclusividade) da ação estatal na indução do desenvolvimento, nesta seção lançarei mão de trabalhos do Instituto de Economia da Unicamp sobre aspectos gerais da integração econômica na América Latina compatíveis com este viés, um desenvolvido por André Biancarelli, do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – CECON, Célio Hiratuka e Fernando Sarti, estes últimos do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia – NEIT, mais recente (2020), e outro do mesmo período em que acontecia o crescimento da ALBA-TCP, coordenado por Simone de Deos (Deos et al, 2009, Deos e Wegner, 2010), no Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais – CERI, que frequentemente recorreu a estudos sobre o tema já realizados na época pelos pesquisadores do CECON e do NEIT. Ambos apontam insuficiência em uma integração pautada por Investimento Direto Estrangeiro, possuem laços consideráveis com a abordagem de Ricardo Carneiro, e compartilham a distinção entre cooperação financeira, tratada nesta seção, e integração produtiva, assunto a ser concentrado na próxima, mais precisamente em relação ao Caribe como pano de fundo estratégico para a “Alianza”.
Biancarelli, Hiratuka e Sarti recorrem à sistematização da UNCTAD para definirem três dimensões da cooperação financeira em nível regional: para facilitar pagamentos e financiamento (curto prazo), para financiar o desenvolvimento (longo prazo) e acordos cambiais para uniões monetárias. Uma união monetária exigiria uma harmonização macroeconômica atualmente inviável para o conjunto de países da América Latina. Sendo assim, a discussão deve estar em demonstrar como objetivos financeiros de curto e longo prazo (duas primeiras dimensões) não entram em conflito com fortalecer comércio regional, complementaridade da produção, gerar empregos e fomentar a competitividade regional.
Os mecanismos de compensação para transações internacionais são uma primeira ferramenta para facilitar pagamentos e financiamento de curto prazo, como o CCR disponibilizado pela ALADI, permitem aos membros atrasar pagamentos por até 4 meses, ou podem funcionar como o SML (Brasil, Argentina e Uruguai), que evitam os custos de transação dos pagamentos efetuados em dólar, útil para pequenas e médias empresas. Para crédito no curto prazo há o exemplo do Fundo Latino-Americano de Reservas – FLAR, da Comunidade Andina, que como já foi dito, buscou caminhos de integração diversos da simples “área de livre comércio”, que permite o uso compartilhado de reservas internacionais dos membros para aumentar a liquidez em momentos de dificuldades na balança de pagamentos. Porém, nem os mecanismos de compensação nem o acesso emergencial a reservas internacionais são suficientes para a operacionalização de grandes projetos disruptivos capazes de promover as integrações produtiva e comercial.
Para financiamentos de longo prazo os autores apontam duas alternativas, os bancos regionais de desenvolvimento e mercados de ações. Uma das conseqüências de não haver harmonização macroeconômica é a ausência de um mercado de ações capaz de abranger toda a América Latina, a principal alternativa seriam agências de fomento (reembolsável ou não) capazes de financiarem projetos intra-regionais, envolvendo mais de um país da região, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, em certa medida bastante suscetível aos anseios estadunidenses no Cone Sul, e o CAF, anteriormente apenas abrangendo a Comunidade Andina, atualmente disponível para toda a América do Sul, muito bem conceituado internacionalmente, e o Banco del Sur, da Unasul, que viria com um forte aporte financeiro mas precisa de alguns ajustes para ser operacional.
Um detalhamento da capacidade de cooperação financeira na América Latina e o quanto ela é fundamental para a coordenação político-estatal do desenvolvimento regional – inclusive atração de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) intra e interbloco – foi cuidadosa e extensamente desenvolvido em 2009 no relatório “Perspectivas do Investimento na Dimensão do Mercosul e da América Latina”, com uma equipe composta por pesquisadores dos institutos de economia da Unicamp e da UFRJ, estudo sob coordenação de Simone de Deos (CERI/Unicamp), parte do projeto “Perspectivas do Investimento do Brasil”, também sob coordenação geral de Célio Hiratuka, recorrendo a trabalho deste e dos outros dois autores da já introduzida publicação de 2020.
Neste trabalho aponta-se não apenas que o incremento produtivo ancorado nos IDE não somente deixa de integrar a economia local por atualmente priorizar a formação “sistemas internacionais de produção integrada”, intrafirma, em cadeias globais de valor articuladas em empresas transnacionais, como atualmente busca investimentos em contextos estratégicos, e um dos atrativos pode ser exatamente blocos regionais de alguma forma integrados. Recorrendo à tipologia de John Dunning, os IDE de transnacionais aos poucos deixam de se interessar por investimentos orientados a explorar exclusivamente recursos naturais e mão de obra não qualificada por proximidade do mercado ou facilidade de exportação (resource seeking) ou vantagens de localização e sinergias de mercado (market seeking) e estão dando lugar para a aquisição de recursos e competências para incrementar sua competitividade por meio da inovação/especialização e capacidades estratégicas (strategic asset seeking), o que não necessariamente economias subdesenvolvidas podem oferecer quando isoladas, mas quando integradas são capazes. Se, como os economistas já citados, sustenta-se que as integrações monetária e financeira são atualmente inviáveis, defende-se que o fortalecimento de blocos regionais no atualmente chamado “Sul Global” deve estar pautado na cooperação financeira via bancos regionais de desenvolvimento e na integração produtiva através de transnacionais intrabloco.
Citam as mesmas instituições para financiamento de longo prazo mencionadas por Biancarelli, Hiratuka e Sarti, incluindo também o BNDES enquanto banco de desenvolvimento de um país que por vezes assume papel de economia central no sub-continente. Um aprofundamento sobre cooperação entre agência regionais de financiamento pode ser consultado em outro trabalho de coautoria de duas das autoras do relatório, Simone de Deos e Rubia Wegner (2010): caso da Iniciativa para a Integração Regional Sul Americana – IIRSA, que reúne BID, Fonplata e CAF e o banco de desenvolvimento brasileiro. A capacidade e a abrangência desta iniciativa teria sido capaz de, a partir da ação inter-estatal, coordenar investimentos em infraestrutura e energia capaz de assegurar o planejamento econômico no nível político e simultaneamente atrair IDE (intra e extrabloco), sem que este recaísse na tendência neoliberal de quando acontece em contexto de liberalização do “regionalismo” aberto. Um ponto fundamental para a revitalização da ALBA-TCP consiste em ampliar as alternativas deste tipo de financiamento, tanto conseguindo a inclusão de Cuba em instituições como o CAF e IIRSA quanto buscando alternativas para incremento dos recursos do Banco del ALBA.
Esta mesma agenda de pesquisa reconhece a importância do IDE extrabloco na medida em que a integração regional avançar no cooperação financeira, mas ressalta que junto a esta é importante a expansão intrabloco de transnacionais de âmbito subcontinental, principalmente devido à uma menor defasagem tecnológica entre os envolvidos; isso conflui com o pensamento de Souza e Moura (2013) quando estes trabalham a questão sob a perspectiva do “intercâmbio desigual”. Várias construtoras brasileiras operaram nesta abrangência e, no âmbito da ALBA-TCP, aqui incide a importância da formação da Petrocaribe, como detalhadamente foi apresentado por Gustavo Menon (2022). O fortalecimento das chamadas “gran-nacionales” dentro da “Alianza” é fundamental para que se consolide uma integração econômica.
Segundo Biancarelli, Hiratuka e Sarti, com a crise de 2008 a proporção de IDE extrabloco na América Latina em relação à média mundial aumentou, mas isso não se reverteu num acréscimo significativo no IDE intrabloco. Também houve uma diminuição da atividade industrial devido ao forte aumento de importações da China, um elemento novo no tabuleiro da economia internacional. Este aumento de fluxos de capitais também não foi direcionado para setores considerados de maior sofisticação, de modo a não fomentar uma complexificação do setor produtivo nem uma inserção mais competitiva nas cadeias globais de valor. Como será visto na a seguir, há diferenças sensíveis entre como tais processos aconteceram na América do Sul e na América Central & Caribe, contraste fundamental para se repensar estrategicamente a ALBA-TCP, dada sua atual composição.
4. Integração Econômica da América Latina: aspectos gerais da integração produtiva
Como já foi aventado na “seção 2”, há uma correlação entre a expansão da ALBA-TCP e o enfraquecimento da economia dos Estados Unidos na primeira década do século, ao passo que também há uma correspondência entre a intensidade das adesões com uma maior correlação entre a economia do Caribe e a da China. De fato, não é mais possível defender que uma cooperação financeira ou integração produtiva tendo como país central o gigante asiático com menor “intercâmbio desigual”, tal que a atração de investimentos e a adesão a cadeias de valor comandadas por empresas chinesas carece de alguma integração regional dos países periféricos já consistente, para que seja possível o “desenvolvimento e comércio estratégico” (atraindo IDE na modalidade “strategic asset seeking”). Para que isso ocorra, é importante que a cooperação financeira efetive uma integração produtiva (ou prospecte maiores probabilidades de), o que pode ser avaliado à partir do intercâmbio de bens intermediários intrabloco e com países que preferencialmente podem exercer a função de centrais com “intercâmbios desiguais” mitigáveis.
Biancarelli, Hiratuka e Sarti indicam que apesar da diminuição das exportações de bens industriais da América Latina e aumento das importações, sobretudo da China, isso contrasta com a proporção recente entre IDE e formação bruta de capital fixo na região ser maior do que a média mundial. No período pós crise, as importações da China tiveram uma taxa de aumento anual em 11,6% entre 2008 e 2014, ao passo que as importações intrarregionais diminuíram. Isso caracteriza o problema apontado pela pesquisa coordenada por Simone de Deos, que sugere que a integração produtiva via IDE sem que haja uma prévia articulação microeconômica intrarregional leva à integração intrafirma dos investidores, em cadeias globais de valor, não em regionais.
Uma outra avaliação importante para o planejamento da integração produtiva é a desenvolvida por Marcos Chiliatto-Leite, já mencionado, que como André Biancarelli é membro do CECON da Unicamp. Atualmente coordenador operacional na gerência do Cone Sul do Banco Interamericano de Desenvolvimento, foi oficial de assuntos econômicos da CEPAL, e desenvolveu seu doutorado no Instituto de Economia também da Unicamp, sobre integração da América Latina. Ele sintetizou sua pesquisa em artigo publicado há três anos (Chiliatto-Leite, 2021), cujo foco principal também foi avaliar o impacto da crescente presença da China nos países subdesenvolvidos do continente americano, reforçando que as oportunidades da chamada “onda rosa” não alteraram a tendência regional em reforçar suas relações de dependência, mesmo com a intensidade dos fluxos financeiros disponíveis com o “boom” da commodities.
O autor observa um descompasso entre as intenções e até mesmo as articulações políticas entre os países, com esforços e compromissos constantes, e avanços concretos da interação regional, e as debilidades observáveis na integração regional em termos concretos. Historicamente, identifica uma tensão entre o “panamericanismo”, incentivado pelos Estados Unidos, que pretende integrar o continente inteiro para se estabelecer como país central com exclusividade sobre o território, e o “latinoamericanismo”, reação dos países do sul para garantir uma articulação regional independente que não fique presa à influência exclusiva de uma potência, que apesar de reconhecer a heterogeneidade interna e dar vazão a vários “blocos” de países, como a Comunidade Andina e o Mercosul, sempre tende a iniciativas mais amplas, como a Unasul e a CELAC; ou autor não diz diretamente isso, mas é nítido que nestas instâncias amplamente latino-americanas prevalecem debates políticos com projetos cuja viabilidade apresenta uma série de dificuldades até então intransponíveis quanto à cooperação financeira e integração produtiva. Sobre esta última, Chiliatto-Leite demonstra as diferentes intensidades da presença da China ao longo do território reforçam a idéia de que coexistem duas realidades muito distintas: uma na América do Sul, outra nas Américas Central e Caribe.
O autor apresenta estas sete modalidades de destino das exportações e origem das importações para i) América Latina e Caribe, ii) América Latina e Caribe excluindo México (fortemente ligado à economia estadunidense), iii) América do Sul, iv) apenas Comunidade Andina, v) apenas Mercosul, vi) Mercado Comum Centroamericano (MCCA), vii) México e viii) Caricom. Para a presente análise mostra-se fundamental entender como a Caricom, que possui vários membros em comum com a ALBA-TCP e mantém acordo com Cuba firmado na ALADI, e MCCA, formada por Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua (estes dois últimos também na “Alianza”), porque abrangem realidades semelhantes ao bloco sobre o qual estamos tratando; Comunidade Andina também possui Bolívia e Venezuela, mas ela inclui países que podem ser considerados mais poderosos economicamente. No caso do MCCA, trata-se de uma iniciativa já da década de 1960, que como o próprio nome diz objetiva formar um “Mercado Comum”, podendo ser vista em uma certa medida como uma iniciativa politicamente concorrente com a ALBA-TCP, tanto em termos programáticos como territoriais. Os dados a seguir são de 2013.
Exportações
Uma primeira observação é que o nível de exportações de bens intermediários que não sejam commodities para a China (ASEAN) da América do Sul é bem mais parecido com da MCCA do que do restante do Caricom (muito baixo), que também exporta para a União Europeia, mas não tanto quanto a América do Sul. Em relação a Estados Unidos e Canadá (TLCAN sem México), Caricom exporta muito, ao passo que as exportações com este destino da MCCA são muito mais semelhantes à América do Sul. De uma forma geral, o nível de exportações para fora da América Latina do Caricom é muito maior que da MCCA, que vende bem mais em território latino-americano e mesmo entre seus membros, e tem um padrão neste quesito muito mais parecido com a Comunidade Andina que com a América do Sul no geral. Considerando que o Caricom inclui muito mais países também pertencentes à ALBA-TCP, pode-se dizer que são países muito mais dependentes dos Estados Unidos e menos da China que a América do Sul, o que explica parte das diferenças marcantes entre América do Sul e Caribe defendida por Chiliatto-Leite, o que pode ser considerado um bom parâmetro para apontar uma desarmonia entre a estrutura das cadeias de valor entre Unasul e ALBA-TCP.
Importações
Em relação às importações de bens intermediários da China, Caricom e MCCA são semelhantes, e os que menos compram dos asiáticos na América Latina, e ambos dependem muito menos de insumos asiáticos que a América do Sul; o mesmo se dá em relação às compras de bens intermediários europeus. Em uma diferença muito pequena, o Caricom também importa mais da América do Norte sem México, e menos da América do Norte incluindo o México; América do Sul compra muito menos da América do Norte (nos dois casos) que os dois blocos do Caribe. Caricom compra bem menos que MCCA da América Latina, e menos ainda intrabloco. Tomando novamente Caricom e ALBA-TCP como semelhantes, observa-se novamente as diferenças entre eles e a MCCA e, principalmente, América do Sul, agora com o agravante da baixa circulação entre os países-membros.
Construindo um paralelo com o que foi exposto na segunda seção deste esboço, confirma-se a ideia de que há sim uma articulação política a ser operada, mas a capacidade dos aportes financeiros promovidos na ALBA-TCP (cooperação financeira) pouco se reverteram em integração produtiva. É preciso recorrer-se a maior aprimoramento do uso dos recursos com um planejamento de efetividade mais preciso, tal que os principais centros acadêmicos dos países-membros tenham maior protagonismo no processo.
Um segundo aspecto relevante é a nítida diferença entre a realidade da ALBA-TCP (assumindo a semelhança entre suas características e as do Caricom) e a média da América do Sul, o que relativiza a relevância da entrada de países deste subcontinente no bloco. Pode ser muito mais interessante fortalecer a integração com outros países do Caribe, tomando as principais economias sul-americanas como parceiros externos (evitando “intercâmbio desigual” intrabloco), opções para assumirem papéis de economias centrais, ofertadoras de IDE, na medida em que esteja fortalecida a integração produtiva e estes aportes externos venham a partir da identificação de oportunidades “strategic asset seeking”.
5. Considerações finais
Não colocarei na conta do escopo possível para este artigo sabidas insuficiências da análise aqui exposta: tratam-se de postos de partida desenvolvidas por um rookie no assunto.
Porém, a partir do que foi possível sintetizar da literatura selecionada, é possível pensar um caminho para a pretendida “revitalização” da ALBA-TCP, a partir de abordagens alinhadas com os objetivos desta articulação internacional, focada na organização de uma cooperação financeira efetivamente elaborada para que os aportes sejam convertidos em integração produtiva. Há também elementos para que priorizem o foco na integração regional no Caribe, e a partir daí alinhar cooperação extrabloco, principalmente com parceiros latino-americanos, o que mitigaria o chamado “intercâmbio desigual”, mas há espaço para a União Europeia e a inevitável China. Também foram expostos argumentos sobre a importância da articulação do bloco numa perspectiva de “desenvolvimento e comércio estratégico”, para receberem investimentos externos igualmente estratégicos.
Para uma amadurecimento desta reflexão, algumas considerações podem ser adiantadas:
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Já se admitiu que as abordagens às quais recorreu-se aqui estão alinhadas com os propósitos da ALBA-TCP, trazem respostas, mas não excluem lançar-se mão de outras como contraponto;
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Os trabalhos aqui elencados podem e devem ter uma leitura mais aprofundada, pois ainda trazem muitos apontamentos que não estão neste texto;
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Os dados presentes nesta literatura quase sempre vão até meados da década de 2010, tal que levantamentos com atualizações podem e devem ser feitos, inclusive porque de lá para cá aconteceram dois processos disruptivos em termos econômicos: a emergência da Economia 4.0 e os impactos causados pela Covid-19;
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Os trabalhos utilizados em si trazem outros dados, além dos aqui apresentados, e certamente será muito promissor também trazê-los para um diagnóstico mais profundo, além de uma análise quantitativa propriamente dita (que na foi feita aqui).
Postas estas considerações, a partir do que foi apresentado aqui tem-se os primeiros elementos para elaboração de cenários mais apurados para esta integração fundamental, que pode ser capaz de promover estabilidade e desenvolvimento para os países do Caribe, promover aprendizagem entre estes, e uma melhor compreensão externa acerca de seus potenciais. Os países que lideram a iniciativa da ALBA-TCP possuem boas relações com vários outros países do continente, e uma integração particular entre eles os potencializa para uma maior integração geral da América Latina.
(*) Marcos Rehder Batista é sociólogo, pesquisador do NEA+ (Inst. de Economia) e CPTEn (Fac. de Eng. Elét. e da Comp.), na Unicamp, e do CEAPG (EAESP-FGV).
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