Beijing, China, 6 de abril de 2024. Distrito Dongcheng, Subdistrito Beixinqiao. ‘Segundo anel’, região central. 10 horas da manhã. 21ºc. Depois de um longo inverno e uma primavera que vem chegando um pouco atrasada, faz sol, enfim.
Estou sentada escrevendo em uma praça. Um computador no colo, um celular na mão e um chá: cena possível graças à segurança de Beijing. O cinza e as árvores secas que até há pouco tomavam o cenário da cidade vão dando espaço para o dia ensolarado e para as flores nas árvores, que ainda carregam as lanterninhas vermelhas, adornos que tomam a cidade no Ano Novo Chinês.
Pela primeira vez em 4 meses a qualidade do ar não é boa ou excelente, hoje está em 128 AQI (CN), com poluição leve. E isso não é banal. Diariamente, quando o celular me mostra a temperatura e a alta qualidade do ar, me recorre a história que meu orientador e amigo Elias Jabbour sempre conta sobre a sua estadia em Beijing no comecinho dos anos 2000: a história envolve uma permanente névoa de poluição e um buquê de rosas que ele, apaixonado, havia comprado para uma chinesa, mas que não resistiram ao bolo da moça e à péssima qualidade do ar. As flores oxidaram nas mãos dele dentro de algumas poucas horas. As últimas décadas foram de grandes esforços políticos e econômicos no sentido de lidar com a crise ambiental, produto da intensiva industrialização que o país atravessou. Os resultados concretos se expressam na – agora comum – alta qualidade do ar em Beijing.
Aos sábados, esse momento em que trabalho para descansar – ou seja, momento sem um bebê procurando meu colo para mais uma mamada que seguimos em livre demanda mesmo agora, em que Helena completa um ano e um dia – é possível graças aos cuidados da nossa ayi. “Tia” em mandarim, que é como se denomina as trabalhadoras domésticas chinesas, e as quais definitivamente deveriam ser mais um dos patrimônios da humanidade tombados pela UNESCO por aqui. Bem, pelo meu DataMãe, cujas estatísticas tem como espaço amostral centenas de mães de todas as nacionalidades que vivem em Beijing e se comunicam via grupos de WeChat – o WhatsApp turbinado chinês –, a hora de trabalho das Ayis atualmente custa entre RMB45 e RMB55 (algo entre R$30 e R$40), sendo que para as tias que falam inglês ou outros idiomas ou tem habilidades mais específicas, as horas trabalhadas tendem a custar mais.
Nossa ayi não fala inglês – inicialmente nos comunicávamos pelo tradutor. Hoje nos comunicamos via gestos, coração e confiança de que ela manterá minha filha viva e feliz, o que tem feito com excelência. Ela trabalha três vezes na semana, 7 horas por dia, recebe mensalmente RMB 4.000,00 e tem mais dois empregos, o que faz com que ganhe muito melhor que eu, mera bolsista de doutorado da CAPES, e a maioria dos trabalhadores brasileiros. Tang, nossa Ayi, é uma das milhares de trabalhadoras migrantes chinesas que, vindas da zona rural, procuram as cidades em busca de melhores salários. E sua renda, no mínimo alta para os nossos parâmetros, é expressão de uma série de políticas de emprego e renda, postas em prática principalmente nos últimos 20 anos na China.
Dentro de alguns dias eu e Helena completaremos quatro meses morando em Beijing. Desembarcamos no dia 10 de dezembro de 2023 para uma estadia de seis meses. Helena tinha oito meses de idade recém-completos. Eu, como pesquisadora visitante da Academia Chinesa de Estudos Sociais (CASS), o principal instituto de pesquisa de Ciências Sociais da China.
Helena é carioca e eu do interior de São Paulo, ambos lugares onde 40ºc são a regra. Eis que, no dia seguinte à nossa chegada em Beijing, começou a nevar, e as temperaturas despencaram para -15ºc. Nevou três vezes só naquela semana: normalmente é o que neva durante um inverno inteiro em Beijing. Foi nesse contexto que eu e Helena Aventureira tivemos a tarefa de encontrar a nossa casa por aqui. Foram dias e dias andando em meio às vielas milenares cobertas pela neve, os hutongs, até encontrarmos nosso lar em Beixinqiao, subdistrito na região central de Beijing a poucos minutos do prédio histórico que hospeda o Instituto de Estudos da América Latina, o ILAS/CASS, que me recebe. Quando narrei essa chegada a um colega da Academia, ele me disse que a neve era sinal de boa sorte. Já meu orientador aqui na China, Zhou Zhiwei, Diretor do Centro de Estudos Brasileiros da CASS, disse: uma mulher brasileira é capaz de tudo.
Sentada daqui também vejo o trânsito, que, sinceramente, me parece meio caótico, embora não desorganizado. É um caos que também encontrou seu consenso. Até isso; marcas da cultura e filosofia chinesas. A direita que é sempre livre, os pedestres que disputam espaço nas faixas com as motinhas e bicicletas, os semáforos que não são respeitados – nem por pedestres, nem por motinhas e nem por motoristas. Mas a velocidade é tão baixa que parece que ninguém teme. É um “ele não é louco, ele tá me vendo” coletivo. A arquitetura em que convivem paredes milenares e estética tradicional com a maior malha de metrô do mundo, prédios e shoppings de arquitetura modernos. Na China somos testemunhas oculares de Arthur Lewis, assistimos a olhos nus a convivência do moderno e o tradicional na marca que deixa o subdesenvolvimento nos países de desenvolvimento retardatário.
Bem, o título “Melissa em Beijing e um Convite” se dá pois aqui estou e tudo que vivi até agora, e o que arduamente tentei sintetizar nas linhas acima, são um convite. Um convite para testemunhar essa China de 2024, mas cuja história milenar se encontra presente em qualquer tropeço desavisado por essa cidade, sua capital. E definitivamente um convite à economia política chinesa, o seu cotidiano e as contradições de uma de suas megacidades pelos olhos e, principalmente, pelo coração – ao qual poucas coisas escapam – de uma estrangeira. Vamos?
(*) Melissa Cambuhy (@melissaembeijing) é Pesquisadora Visitante no Instituto de Estudos da América Latina, da Academia Chinesa de Ciências Sociais (ILAS/CASS). Doutoranda em Relações Internacionais (PPGRI-UERJ), Mestra em Direito Econômico (Mackenzie). Mãe da Helena.